As 85 obras de Miró são do Estado? Ministério Público diz que sim, Governo diz que não
No processo que corre em tribunal sobre a polémica venda da colecção do BPN, o Ministério Público defende que as empresas que querem vender as obras são entidades públicas e que, por isso, os seus bens, obras de arte incluídas, também são públicos.
O principal argumento do Ministério Público (MP), que se tem batido contra a venda das obras e iniciou esta luta jurídica, é que as sociedades criadas para abater a dívida do BPN, a Parvalorem e a Parups, não são entidades “particulares”, mas sim “públicas”, “detidas exclusivamente pelo Estado” e “de capitais integralmente públicos”. O MP defende assim que a colecção é do Estado, por estar na posse de duas empresas por este detidas.
A procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, assumiu há mais de um ano como “obrigação” do MP, numa entrevista à RTP, impedir a saída das 85 obras da colecção do pintor. E quais são os outros argumentos do Ministério Público, além dos que conhecíamos através das palavras da procuradora, que defende também a classificação da colecção? Entende que aquelas obras do artista catalão se revestem de “um inestimável valor cultural” e que a sua saída do país constitui uma “perda irreparável” para o património cultural, fundamentos que estão na base do pedido de inventariação e classificação.
Parvalorem e Parups defendem-se, lê-se ainda no processo, com o argumento de que, apesar de serem públicas, se regem pelo direito privado, concluindo que a venda impugnada constitui “uma decisão livre de particulares que dispensa a intervenção do Estado”. As sociedades acusam o MP de “manifesta falta de fundamento”, argumentando que “não há qualquer ilegalidade no processo de venda das obras”. O MP quer provar que as obras podem ser inventariadas e classificadas por serem públicas, não sendo assim necessário serem os proprietários a pedir a sua protecção como define a Lei de Bases do Património Cultural.
A defesa do Governo porém diz que as sociedades são independentes da sua acção e que o Tribunal Administrativo não tem competências nem para avaliar se as obras devem ser sujeitas à protecção pedida nem para avaliar a decisão política de vender a colecção.
É um imbróglio jurídico que se arrasta há mais de um ano. Alegando agir “em defesa do património cultural, dos bens do Estado e de outros valores integrantes do património cultural”, o MP acusa o Ministério das Finanças (MF), a Secretaria de Estado da Cultura (SEC) e a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) de não estarem a defender esses mesmos interesses.
O processo a que o PÚBLICO teve acesso é a acção principal que deu entrada no tribunal a 24 de Abril do ano passado, depois do cancelamento e adiamento do leilão que deveria acontecer na Christie’s de Londres. No mesmo tribunal corre uma segunda acção, interposta no final de Novembro de 2014, que impugna “os despachos de arquivamento” de classificação assinados pelo director-geral do Património Cultural, Nuno Vassallo e Silva. O PÚBLICO não conseguiu consultar esta acção.
O que o MP “pretende é, confessadamente, opor-se à venda das obras”, quando esta “não carece de autorização”, alegam os advogados da Parvalorem e da Parups, presididas por Francisco Nogueira Leite, numa exposição com 204 pontos.
Os advogados questionam ainda o número de acções levantadas pelo Ministério Público até agora — quatro providências cautelares e duas acções principais —, quando “o pedido é exactamente o mesmo e traduz-se na abertura de um procedimento de inventariação e classificação”.
Para sustentar a tese de que estas empresas são públicas, o Ministério Público lembra que o Ministério das Finanças “é responsável pela gestão do património do Estado e através da Direcção-Geral do Tesouro e Finanças é o accionista único da Parvalorem e da Parups”. Recorda o MP que, de acordo com a Resolução do Conselho de Ministros n.º 49/2007, de 28 de Março, que define os Princípios de Bom Governo, “a Parvalorem obriga-se ainda ao cumprimento das orientações estratégicas definidas pelo accionista para a empresa e para o sector empresarial do Estado”.
Na sua defesa, também o Governo, através do Centro Jurídico da Presidência do Conselho de Ministros, explica por que considera que a Parvalorem e a Parups, enquanto sociedades comerciais, actuam como particulares: “Todos os actos que praticaram, que praticam ou que venham a praticar relativamente às obras de arte de Miró foram, são e serão sempre privados”. “Desde logo, porque não são tomadas ao abrigo de normas de direito público, mas no âmbito da execução de competências próprias, reconhecidas no direito privado às administrações de tais pessoas colectivas privadas”, desenvolve.
A decisão de levar estas 85 obras de Miró a leilão foi anunciada em Julho de 2012 pela então secretária de Estado do Tesouro e actual ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque.
Para o MP, “a utilização do direito privado, por parte da administração, para a gestão de tarefas que continuam, materialmente, a ser públicas (administrativas), não afasta o cumprimento das obrigações da administração para com o interesse público e os direitos e interesses legítimos dos administrados”. Por isso, em vez de afirmar que manter estas obras em Portugal não é uma prioridade, o Governo deve antes promover a protecção desta colecção através da abertura de um procedimento de classificação, sujeitando as obras a uma protecção legal especial.
O MP não se conforma com o facto de a DGPC ter arquivado, no Verão do ano passado, a classificação determinada pelo tribunal. O arquivamento aconteceu depois de as sociedades presididas por Nogueira Leite terem feito chegar à DGPC um documento a comunicar que se opunham à classificação destas obras, argumentando que elas estavam em Portugal há menos de dez anos, menos tempo do que o exigido para que as obras privadas possam ser sujeitas a classificação. O artigo 68.º da Lei de Bases do Património Cultural determina que, “salvo acordo do proprietário, é vedada a classificação como de interesse nacional ou de interesse público do bem nos dez anos seguintes à importação ou admissão”.
Nos documentos entregues pela Parvalorem constam os registos de importação definitivas das obras, provando como estas estão no país há menos de dez anos, à excepção de quatro que entraram em Portugal em Outubro de 2004 — a DGPC não as classificou por considerar tratarem-se de “obras menores”.
O MP contesta e diz que parte da colecção está no país há mais de uma década. Alega que 41 peças estão nesta situação e junta ao processo os documentos da sua importação temporária e uma troca de correspondência entre a sociedade Zevin Holdings LLC e o BPN que revelam o negócio por trás das obras. Nogueira Leite já tinha admitido ao PÚBLICO que estas obras entraram de facto nessa altura em Portugal, mas que voltaram a sair, posteriormente. Esse dado não está, contudo, documentado no processo, o que leva o MP a defender que as obras “nunca saíram da posse do BPN” após 2003.
Por último, há a questão do valor cultural da colecção. O MP lembra que o direito à cultura é “um verdadeiro direito fundamental” reconhecido pela Constituição, cabendo ao Estado “promover a salvaguarda e a valorização do património cultural”. Argumenta que o “património de um país não se circunscreve à nacionalidade dos autores das obras”, “a menos que se pretenda defender a devolução do quadro de [Jheronimus] Bosch [As Tentações de Santo Antão] do Museu de Arte Antiga ou a transferência para Itália da própria Mona Lisa”, de Leonardo Da Vinci.
O MP socorre-se dos pareceres pedidos pela então directora-geral do Património, Isabel Cordeiro, a David Santos, director do Museu Nacional de Arte Contemporânea — Museu do Chiado, e a Pedro Lapa, director artístico do Museu Colecção Berardo. Na altura, em Janeiro de 2014, Santos e Lapa defenderam a manutenção das obras em Portugal. E lembra o MP: “Mesmo numa selecção tão específica como foi a recente retrospectiva Painting and Anti-Painting 1927-1937, que o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque dedicou ao artista [Miró] em 2008, três obras deste núcleo integraram a referida exposição”.
A defesa do Ministério das Finanças e da Secretaria de Estado da Cultura desvaloriza, no entanto, os pareceres de David Santos e Pedro Lapa, alegando que estes foram pedidos por iniciativa de Isabel Cordeiro que deixou o cargo em Janeiro do ano passado alegando “divergências profundas de estratégia. “Os mencionados documentos, além de não serem obrigatórios, não são vinculativos”, e foram pedidos, acrescentam os advogados, “à revelia do que até então era o procedimento habitualmente seguido”. “A então directora da DGPC lembrou-se de pedir tais documentos.”
Segundo a defesa do Governo, apenas se pode extrair destes “pretensos pareceres” que “estamos perante bens culturais móveis de relevo, facto que, salvo melhor opinião, ninguém contesta”. “Daí a poder afirmar-se que um bem cultural de valor assinalável não-classificado tem de ser classificado e inventariado representa um salto no pensamento jurídico.” Não se pode aceitar e é uma “confusão de competências e de funções de soberania abusiva e perigosa”.
Por sua vez, num documento à parte, o Ministério das Finanças, através dos seus advogados, afirma ainda que a venda das obras servirá para amortizar os prejuízos do BPN, sendo este o objectivo principal da Parvalorem e da Parups. Estão a fazer o seu trabalho. Há “uma justificação de interesse público associada”, além de que “não se vislumbra qualquer outra forma de rentabilizar estas obras”. Argumento também evocado pelas sociedades que dizem “defender os melhores interesses dos seus trabalhadores, accionistas e ainda dos seus credores, maximizando o valor dos seus activos”. Com o leilão das peças esperavam arrecadar pelo menos 35 milhões de euros. A não-realização do leilão implica custos para os contribuintes: já custaram 1,9 milhões de euros em juros aos contribuintes, ou seja, 5251,5 euros por dia, tem argumentado publicamente Nogueira Leite.
O Ministério das Finanças não tem, porém, dúvidas de que este processo está “condenado ao fracasso por razões processuais”. E rejeita a argumentação do MP: “O acervo de 85 obras de Miró nunca foi e não é propriedade do Estado português”.