Museu de Arte Antiga compra em Londres uma peça “ímpar” resgatada aos escombros de 1755
Baixo-relevo de cerca de 1575 retrata o teólogo Diogo de Paiva de Andrade e foi adquirido por 43 mil euros, anunciou esta sexta-feira a Direcção-Geral do Património Cultural.
A obra, um medalhão em bronze com 33 centímetros de diâmetro, posteriormente emoldurado e com uma base em mármore, chegou esta quarta-feira ao MNAA, onde integrará as colecções de escultura.
“Já na época do Marquês de Pombal se percebeu a importância histórica deste medalhão”, explica Anísio Franco, conservador de escultura e vidros do museu. Também especialista em leilões, Anísio Franco chama a atenção para uma segunda placa aplicada no século XVIII ao reverso do medalhão quinhentista. Nessa segunda placa, uma longa inscrição em latim explica vários aspectos da memória transportada pela peça em que o rosto de Diogo de Paiva de Andrade ficou gravado num retrato lateral, feito na tradição renascentista das peças “ao romano” com que mais de um século antes, em Itália, se tinham começado a celebrar os grandes heróis antigos e contemporâneos.
A inscrição setecentista estabelece, por um lado, os principais dados biográficos de Paiva de Andrade, contemporâneo de D. Sebastião e o mais importante agostinho do reino, participante, aos 33 anos, no Concílio de Trento, considerado um dos três concílios fundamentais da Igreja Católica. Por outro lado, a inscrição fala do processo de achamento do próprio medalhão, contando como “foi recuperado intacto das ruínas” da capela onde o teólogo foi enterrado em 1575 e como a peça foi depois “esquecida até ao momento em que (…) Sebastião José de Carvalho e Mello (…) corrigiu esta negligência”, fazendo com que a memória de Paiva de Andrade “fosse protegida da devastação do tempo”.
“A inscrição demonstra que havia já, nitidamente, uma vontade de preservação de memória”, sublinha Anísio Franco. Uma vontade que se liga hoje tanto à importância da personagem retratada quanto às características formais da própria peça e ao seu percurso histórico.
Com dimensões que ultrapassam em muito a medalhística no sentido em que hoje estamos habituados a pensá-la, não se conhece, em Portugal, outra peça semelhante. “Tem alguma raridade, mesmo considerando a produção internacional”, diz Maria João Vilhena de Carvalho, também conservadora de escultura do MNAA.
“No contexto das obras do museu é ímpar. Não temos nenhuma que se possa assemelhar a esta”, refere a especialista, apontando exemplos de produção internacional em quase todos os grandes museus do mundo, instituições como o Victoria & Albert, de Londres, ou o Kunsthistorisches Museum, de Viena.
Um feliz achado
Só agora, com a entrada nos acervos do MNAA, começará o estudo aprofundado deste medalhão. Até aqui desconhece-se, por exemplo, a sua autoria. No entanto, segundo Maria João Vilhena de Carvalho, a sua produção é “provavelmente” nacional, eventualmente por influência de – ou executada por – algum artista italiano a trabalhar, à época, no reino.
Não se sabe também de quem terá partido a encomenda. Outras peças internacionais semelhantes serviam, na maior parte dos casos, como presentes de aparato – ofertas, por exemplo, entre príncipes. O medalhão português “terá sido pensado para uma parede ou mesmo para o túmulo” de Paiva de Andrade, explica ainda Maria João Vilhena de Carvalho.
Depois de por volta de 1438 Pisanello ter cunhado a medalha comemorativa normalmente considerada como a cabeça de série renascentista desta forma de difusão do retrato – com o busto de João VIII, penúltimo imperador bizantino, por ocasião de uma sua visita a Itália –, muitos dos mais importantes artistas do período deixaram peças deste tipo. No entanto, a importância para Portugal do medalhão dedicado a Paiva de Andrade foi evidente para o conhecido comerciante de arte londrino Rainer Zietz.
Anísio Franco conta que o marchand entrou pela primeira vez em contacto com o MNAA em 2005, oito anos depois de a peça ter aparecido pela primeira vez no mercado, num leilão da Christie’s de Londres, onde foi vendida por mais de 16.500 libras (20 mil euros, ao câmbio actual). Nesse primeiro contacto, quando os especialistas do MNAA primeiro tomaram conhecimento da peça, Zietz propunha ao museu uma compra no valor de 150 mil euros – mais de sete vezes o valor por que a obra tinha antes ido à praça. Ainda assim, o museu entendeu que a aquisição devia ser feita. O parecer enviado à tutela acabou, no entanto, na altura, por não ter seguimento. Entretanto, já em Julho deste ano, a peça voltou ao mercado, desta vez através da Sotheby’s. E com uma expectativa de venda inferior: entre as 40 mil e as 60 mil libras (aproximadamente 48 mil e 72 mil euros).
Não suscitando interesse, a peça, que compunha o lote 81, acabou por ser retirada sem licitações – o que permitiu ao MNAA fazer uma proposta de aquisição mais vantajosa: 36 mil libras (43 mil euros).
Os valores inicialmente propostos por Zietz eram “equivalentes aos [de obras semelhantes] do mercado internacional”, explica Anísio Franco. O especialista aponta, contudo, o que o proprietário acabou por perceber: que “esta peça só interessa realmente ao mercado português”. Depois, o marchand teve ainda que considerar o actual contexto nacional: “Nas circunstâncias actuais, o proprietário percebeu que o valor de 2005 seria impossível.”
“Acaba por ser um achado, um feliz achado”, conclui Maria João Vilhena de Carvalho.
Foi uma de apenas duas aquisições que o MNAA, o mais importante museu nacional, fez em 2013, juntando-se a uma peça de joalharia da Colecção António Barreto.