António Lamas, uma demissão óbvia
Eticamente, António Lamas falha de forma irremediável.
Para se perceber com clareza o pensamento e as motivações de António Lamas ao aceitar a presidência do CCB, basta ler, sem preconceitos nem reservas mentais, a entrevista que este deu ao PÚBLICO a 9/11/2014. Nela, à pergunta de Lucinda Canelas “Teria aceitado a presidência do CCB se não fosse a missão de conceber o novo eixo Belém-Ajuda?” respondeu: “Não (...) não concebia sentar-me aqui, apesar de a vista ser fantástica, se essa ideia não pudesse ser posta de pé”.
Entretanto, o Governo chumba o Plano Estratégico Ajuda-Belém.
“A ideia” afinal já não iria ser posta de pé. Mas a vista do gabinete começa a exercer um fascínio maior do que parecia. Lamentavelmente, um homem com um passado de inegável mérito na gestão patrimonial e cultural dá início a um finca-pé com a sua tutela, esquecendo-se que, tal como os cargos políticos, os cargos de confiança política também são transitórios e devem ser exercidos com os mesmos níveis de exigência ética e de desprendimento que se exigem aos políticos. Tal como os cargos políticos, também estes são pagos com o dinheiro dos contribuintes. Assim, não me pareceu bem que António Lamas anunciasse que “apenas” recebeu 11.000€ de indemnização por ter sido demitido antes do final do mandato. Para quem “não concebia sentar-se ali se a ideia não fosse para a frente”, o mais natural seria ter-se demitido e regressar à sua faculdade, onde tem o seu lugar de catedrático à espera, com salário.
Eticamente, António Lamas falha de forma irremediável.
As tentativas que faz de partidarizar esta demissão caem por terra: Lamas atravessou todos os governos socialistas (nomeado por João Cravinho a José Sócrates), sempre renovando nomeações nos cargos que detinha. Na verdade, a primeira vez que o CCB recebeu um presidente, ostensivamente, por determinação política, foi com Passos Coelho, que trocou Mega Ferreira por Vasco Graça Moura.
Há décadas, Lamas demitiu-se de presidente do IPPC quando Santana Lopes foi nomeado secretário de Estado da Cultura, tornando público (com alguma deselegância) que não trabalharia sob as ordens do novo secretário de Estado. Porque não o fez agora novamente? Agora sim, tinha razões de sobra para tal: a sua nomeação estava ligada umbilicalmente ao Plano Estratégico para Belém — tal como Barreto Xavier fez saber em comunicado à Lusa em 28/10/2014; era, por inerência, diretor executivo da Estrutura de Missão para o Eixo Ajuda-Belém, também extinta pelo Governo. Na verdade, a sua missão tinha caído com o seu Plano e com a extinção da sua Estrutura de Missão. Ficou sem chão. Nada sabe de programação, de artes performativas, de espetáculo, segundo o próprio. (Ler PÚBLICO, 9/11/2014.)
Sejamos claros: alguém concebe que a Casa da Música no Porto ou a Fundação de Serralves pudessem ser um centro de reconversão urbana da Boavista à Foz? Com Departamento de Gestão de Obras e equipas de construção civil? A missão do CCB é demasiado importante para Lisboa e para o país e tem sido negligenciada na sua essência fundamental: produzir Cultura (sim, produzir), ser um centro difusor e catalisador de conhecimento, competir com os grandes centros culturais da Europa. É no seu core business que deve concentrar todos os seus recursos e esforços. Já lhe basta ter orçamentos reduzidos pela crise e ter passado a integrar o perímetro de consolidação da dívida pública como instituição reclassificada. Chega. A capacidade de ação do CCB atingiu o limite do (im)possível; só faltava agora transformá-lo no coração dum estaleiro de obras.
Lamas foi à audição parlamentar, a pedido do PSD, para um derradeiro queixume público. Afinal, apenas confirmou que o seu mandato para o CCB tinha um objetivo associado: a conceção do Plano Ajuda-Belém; confirmou que o seu Plano não tinha o acordo, nem a participação da CML; confirmou que na sua longa carreira pública nunca foi alvo de “limpeza” pelo PS; confirmou que nada sabe nem se interessa pelo coração vibrante do CCB — arte, espetáculos, literatura, exposições, música, expressões artísticas do mundo. Só o ouvimos falar de projetos de construção civil, de enterramento de linhas férreas, do revivalismo à António Ferro numa hipotética exposição do Mundo Português de Salazar.
Um plano estratégico para o eixo Ajuda-Belém é fundamental, mas deve ser uma missão da CML, em articulação com o Ministério da Cultura, com o Porto de Lisboa e com as instituições públicas e privadas da área, incluindo a Associação de Turismo de Lisboa. A gestão coordenada dos equipamentos culturais da zona é, naturalmente, o passo consequente — e não é propriamente a descoberta do caminho marítimo para a Índia. Para isso, não é necessário esmagar o CCB.
Deputada do PS, ex-Ministra da Cultura