Álbum para cantora e coro grego
Criado com a estrutura de um filme, em que uma narrativa vai correndo do início ao fim, com uma ideia de caminho e um desenvolvimento em actos, Mergulho em Loba é o primeiro álbum de Joana Barra Vaz. Triunfo de uma escritora de canções que resistiu ao máximo entregar-se à música.
Joana Barra Vaz ri-se do cliché: o mar. O mar que ensopa e se entranha em cada uma das canções de Mergulho em Loba, o seu primeiro álbum, cujo baptismo foi decidido algures nas ondas das águas agora mesmo à sua frente, numa praia da Parede.
Cresceu neste ambiente, fascinada com a certeza de que, indiferente àquilo que se passa na sua vida, o mar está sempre ali, no mesmo sítio, inquieto mas seguro – “há uma inconstância que apazigua e gosto de se poder não ver nada”, diz ao Ípsilon.
Quando compôs o álbum que sucede ao EP Passeio pelo Trilho (assinado como Flume), Joana vivia em Lisboa, estava rodeada de prédios, havia sempre betão no caminho do horizonte e sentia a falta desta paisagem aberta, em que se pode pertencer ao ambiente sem se ser por ele esmagado. As canções estão cheias desta falta, mas não chegam ao ponto de se sentir repentinamente à deriva – como lhe aconteceu em Bruxelas, ao procurar no âmbito do programa Erasmus uma escola “que unisse várias artes” e não a obrigasse à escolha precoce do caminho que pretendia seguir. “Em 2011, fui lá fazer os testes em duas escolas, entrei, mas fiquei doente e delirava – coisa que só me acontecia em miúda – que queria o mar.”
Autodiagnosticou-se como um caso de dependência marítima muito mais grave do que imaginava, mas concluiu que se trata apenas de uma fase de adaptação e decidiu avançar. Só que a escola em causa mudou as regras, deixou de admitir inglês como língua permitida para novos alunos estrangeiros, impôs o flamengo como obrigatório e, quando lhe ligaram a informar da alteração, Joana, que estava a despedir-se de Portugal algures no Alentejo, deixou-se ficar. E aquilo que se seguiu foi o que julgava poder evitar. Para alguém que diz ter sérios problemas em escolher “seja a área específica ou o estilo” – “não tiro proveito disso de estar numa capelinha ou num cantinho”, diz – a indecisão pareceu resolver-se com a decisão de avançar para um documentário partilhado com Maria João Marques que era uma resposta em forma de carta à canção Tanto mar, de Chico Buarque. Uma carta que reunia declarações de gente como Sérgio Godinho, António Zambujo, JP Simões, Márcia, Manel Cruz, Miguel Araújo, José Eduardo Agualusa ou Bernardo Barata e as enviava de volta para o Brasil, uma mensagem enfiada numa garrafa à espera de alcançar o outro lado do Atlântico.
No meio das ondas de uma praia da Parede, Joana e Maria João falavam então, em 2012, do impacto que Meu Caro Amigo Chico tivera na estreia no Cinema São Jorge e “da ironia que era estrear num ano em que se previa que a coisa ia começar a descambar em grande escala”. O que descambava, entenda-se, era a famigerada crise. E se a canção de Chico Buarque falava de uma esperança no pós-revolução de 1974, lamentando não estar em Portugal para também ele erguer um cravo no ar, a resposta no filme era um retrato de instabilidade desenhado colectivamente por um conjunto de músicos portugueses. Um filme para que Chico soubesse como as coisas andavam desesperançadas por aqui.
No meio das ondas, “numa espécie de paraíso, de gueto”, em que o mar salvava da realidade de ter os pés em terra, Joana estava já irrequieta com o que fazer em seguida. Possivelmente um novo filme, talvez uma curta, mas confessava também a Maria João que estava a compor imenso.
A conversa acabaria por desembocar numa reflexão sobre a figura do lobo-do-mar – “já ligada a algo que tentei fazer neste disco, acerca de a instabilidade poder ser íntima, pessoal e amorosa, mas também completamente plural, haver um nós muito forte”, explica. Essa instabilidade a que então se prendia vinha igualmente da entrada nos 30 anos, do lastro deixado pelas relações, das transformações operadas na vida, até que Joana e Maria João se perguntaram o que era feito das mulheres no meio disto, se o seu papel era sempre o de ficarem em terra firme, a olhar desconsolada e impotentemente para o mar. “Começámos a fazer um daqueles exercícios de despistar mitos e a perguntar-nos onde estava a loba do mar, onde estava a mulher activa, onde estava o ponto de vista de Penélope na Odisseia?”
As leituras de Joana, da Odisseia a Linha de Sombra, de Joseph Conrad, ou Palomar, de Italo Calvino, apontavam todas para mar e mitos, e as canções apresentavam-se como uma forma de “mergulhar nos mitos e prosseguir a procura do papel da mulher.” “Comecei a preparar-me para essas narrativas”, conta, sabendo já antes que o mar seria responsável pelo seu segundo lote de canções.
No meio das ondas, portanto, Mergulho em Loba começava, ainda em 2012, a anunciar-se. “Isto é um disco”, disse à amiga, quase ao mesmo tempo que o dizia a si mesma.
Os vários actos das canções
Quase sem saber como, na verdade, Joana Barra Vaz tinha-se visto empurrada para as canções. Achava ela que tinha escolhido o cinema, que “a música”, e a comparação bem a propósito, “era um bocadinho como o mar, estava ali e fazia parte do equilíbrio diário, tocar uma ou duas horas de piano, não tocar e sentir falta”.
Aos poucos foi juntando canções até que os músicos Bernardo Barata e José de Castro lhe começaram a chamar a atenção para isso mesmo e insistiram para que lhes desse um qualquer fim: “Como é que é possível? As pessoas às vezes lutam com o facto de não terem canções suficientes e tu tens”, diziam-lhe. Só que, apesar de abastecer com algumas letras o disco Turista, de Bernardo (baixista dos Diabo na Cruz, ex-Feromona e Real Combo Lisbonense), Joana estava então a trabalhar no filme de Chico Buarque e não se achava com “perfil para dar a cara”. “As canções são muito mais importantes do que a minha cara”, reforça. “Sinto-me muito mais confortável nos filmes, em que eles falam por si e o meu nome está lá no fim.”
Como Bernardo é um dos fundadores dos Estúdios Iá (com Fred Ferreira), ele e José de Castro ligaram-lhe um dia com uma convocatória já fechada: tinham libertado umas semanas do estúdio para que Joana gravasse as suas canções. Entre 30 e tal espalhadas por pastas de computador, cadernos e notebooks, percebeu que havia três cenários que se impunham pelas imagens visuais (as memórias e os lugares de Passeio pelo Trilho, o mar de Mergulho em Loba e um terceiro ainda por desvendar). “Isto é uma muleta”, explica, “e tem muito que ver com a maneira como penso os filmes – a backstory, as personagens, onde estamos, para onde vamos –, toda uma estrutura narrativa para escolher canções e dividir discos que me ajudam a passar pelos vários actos.”
De empurrão em empurrão, Joana foi-se fazendo música contra aquilo que o seu bom senso lhe dizia e repetia aos outros – “tenho 30 anos, é ridículo agora de repente ir ser música”.
Gravou o EP em estúdio, Barata enviou as músicas para o radialista Henrique Amaro que a seleccionou para a compilação Novos Talentos Fnac, fez um primeiro concerto para amigos que seria um teste e desistiria caso desafinasse – o que não aconteceu e, em vez disso, descobriu o poder das canções em palco – vendo-se como “uma espécie de amendoins em cima do balcão do bar” e em pouco tempo o EP que tinha gravado apenas para partilhar com os amigos tornava-se o primeiro lançamento de uma nova editora chamada Azáfama.
Pensando os discos com um rigor de uma contadora de histórias que controla cada pormenor, Joana avançou para Trilho ligando-o a ideia de “densidade florestal e de procura de um caminho no meio de vários caminhos” em que as canções estavam liricamente enleadas. Os arranjos privilegiavam, portanto, as madeiras – fagote e contrabaixo. Em Mergulho em Loba, queria um lado “doce e quente”, mais trompa e violoncelo, escolhidos também por transitarem entre as notas e não permitirem o silêncio. Afinal, ao se inteirar de um estudo científico que documentava o som do oceano a grande profundidade, perceberia as inesgotáveis texturas que matavam qualquer ideia de silêncio. O seu disco teria de colar-se a essa verdade.
Narradora e coro
Tal como acontecia com Meu Caro Amigo Chico, também Mergulho em Loba é atravessado pela crise e pela austeridade, letras que chamam a si uma desobediência quase birrenta e as marcas das manifestações dos últimos anos, começando por uma “solidão ingénua” metamorfoseada numa “solidão geral e brutal” que lhe ficou depois de ter sido atingida pela carga policial contra os manifestantes de final de 2012 em frente à Assembleia da República. “Isso foi um catalisador para eu decidir”, confessa. “Ai é assim? Então é que vou mesmo fazer este disco.” Daí também a opção de Joana em “cantar sempre em frente, quase sem expressão”, segundo a própria, inspirada pelas tragédias gregas. A ela cabe-lhe o lugar de narradora (ocupada em contar e não em sentir) a que o coro vai respondendo.
Quando Joana Barra Vaz fala numa quase ausência de expressão (reflexo da forma como Luís “Benjamim” Nunes a ajudou a procurar o lugar da sua voz), o que naturalmente não diz é que há riqueza soberba no conjunto de canções que compõe Mergulho em Loba, na forma preciosa como cada uma se revela em arranjos que afastam qualquer tema de um parentesco ténue com a vulgaridade. Nada neste disco, em que se escutam os ecos de José Afonso (o baladeiro mas também o moçambicano), Feist, Beck ou Sílvia Pérez Cruz, todos heróis assumidos da cantora, existe por acaso e tudo se liga para ser ouvido em sequência.
Mergulha em Loba pede a atenção exclusiva que a contemporaneidade quase sempre nega. Mas é assim que devemos mergulhar neste disco e seguir esta forma inspirada de fazer canções que parecem acontecer em dois planos simultâneos: a voz de Joana, descendo pelas palavras na companhia de uma guitarra simples e serena; e todos os restantes instrumentos (baixos, baterias, sopros, o violoncelo extraordinário de Ricardo Jacinto, a segunda voz da obrigatória Selma Uamusse), que se diria dançarem à sua volta, num vórtice que muda constantemente de configuração e amplifica sempre uma beleza a perder de vista.