Abaixo a formatação, viva a mocidade
A competição principal de Locarno não é só feita de filmes bons. E alguns títulos refugiam-se demasiado na formatação do “cinema de autor”...
Comecemos por uma evidência: dois filmes não fazem uma vaga, mesmo que possam sugerir uma “mini-vaga”, e para acharmos que há uma “nova vaga búlgara” a caminho não basta a coincidência de ver dois filmes da Bulgária no mesmo ano no concurso principal de Locarno. A julgar pelas amostras de Slava, da dupla Kristina Grozeva e Petar Valchanov (cujo filme anterior, A Lição, obteve algum êxito nos festivais), e Godless, de Ralitza Petrova, existe de facto um “ar de família” entre ambos, que nos fez inevitavelmente pensar na “explosão” romena dos últimos anos. Mas não é por aqui que a Bulgária vai passar a ser a nova Roménia, já que nos dois casos estamos longe das alusões satíricas dos vizinhos, mais próximos das elipses políticas de russos como o já desaparecido Alexei Balabanov ou Andrei Zvyagintsev, e instalados no território puro e duro do cinema social indignado de denúncia, escuro, negro, escarninho, de nó na garganta.
Slava e Godless são filmes que olham para a Bulgária moderna como um estado falhado, clientelista, corrupto, exemplo do “capitalismo à moda de Leste” que parece ser apenas uma outra fachada para o bom velho socialismo da (des)igualdade de classes, e escolhem como personagens gente que já está tão enterrada na lama que só um mergulho no mais fundo da humilhação e do sacrifício a pode redimir. Não questionamos a urgência ou a necessidade de abordar estes temas; apenas apontamos que, nesse processo de denúncia com o coração nas mãos, a inatacável indignação moral dos seus autores corre o risco de instrumentalizar os filmes como obras edificantes ou exemplares que esbarram na indiferença ou na boa vontade do liberalismo ocidental e acabam por ficar a rodar em circuito fechado nos festivais.
A vantagem, ainda assim, vai para Slava, que foi um dos títulos mais bem recebidos no concurso oficial: começa como uma sátira assaz romena e bastante devastadora da burocracia e do abismo classista que o mundo moderno parece ter reinstalado na sociedade, à volta de um ferroviário de província que faz prova de honestidade num meio onde a corrupção é endémica. O seu velho relógio de pulso com valor sentimental põe em movimento uma inexorável mecânica do desastre que acabará por ter resultados catastróficos para o ferroviário e para a relações públicas do ministério que o trata com uma condescendência de saloia ressabiada; Kristina Grozeva e Petar Valchanov dirigem o filme para terrenos mais ambíguos e profundamente duros, mas o final chico-esperto deixa no ar sugestões de um filme manipulador.
Godless não tem o humor (mesmo que negro) de Grozeva e Valchanov, conforma-se mais facilmente à estética do filme de denúncia social (como aliás um outro exemplo do concurso de Locarno, Marija, do alemão Michael Koch, sobre uma ucraniana forçada a prostituir-se para sobreviver) e nesse processo acaba por fechar-se sobre si próprio e restringir-se à coluna dos “filmes de tema” ou de “mensagem”. Nada contra desde que o tema venha embrulhado em cinema inspirado, coisa que não sentimos em nenhum destes filmes formatados para uma certa ideia do cinema de autor.
Sentimos o mesmo problema em By the Time It Gets Dark, segunda longa da tailandesa Anocha Suwichakornpong: esta rêverie que faz estafeta entre uma série de personagens ligadas ao cinema, com a tentativa de uma realizadora de fazer um filme sobre a vida de uma antiga activista como “centro nevrálgico”, é tão Apichatpong Weerasethakul que até chateia – até porque o montador habitual do tailandês, Lee Chatametikool, é um dos produtores. A referência a Weerasethakul só é um problema porque as “guinadas” a que Suwichakornpong força a história são literalmente decalcadas do cinema do tailandês, até na aposta nos planos longos e na fotografia cuidada, mas sem a leveza ou a graça que o autor de Cemitério do Esplendor domina tão bem.
É talvez por isso que preferimos a todos estes a modéstia pobrezinha mas sincera de Jeunesse, primeira longa do francês Julien Samani, com nome feito no circuito das curtas, produzida por Paulo Branco. Cumpre, curiosamente, a tradição dos últimos anos de haver um filme “a bordo” no concurso principal, depois do porta-contentores de Fidelio de Lucie Borleteau em 2014 e do iate de Chevalier de Athina Rachel Tsangari em 2015. Aqui, é um cargueiro decrépito, a bordo do qual um moço voluntarioso apaixonado pelo romance do mar irá ver as suas ilusões sobre a velha marinharia completamente destruídas.
É uma actualização para os nossos dias do Mocidade de Joseph Conrad, numa adaptação que transfere inteligentemente para o mundo moderno o romantismo rigoroso e honrado do escritor polaco; a esse nível, Jeunesse encontra paralelos interessantes com Vor der Morgenröte, de Maria Schrader, e Inimi Cicatrizate, de Radu Jude, ambos filmes que invocam um passado dourado que o presente erradicou quase por completo. E as evidentes limitações de orçamento acabam por jogar a favor do décor quase único de um barco literalmente a dar as últimas, onde Kévin Azaïs (o moço voluntarioso) e Jean-François Stévenin (o capitão quebrado pela vida) jogam uma qualquer última cartada que dê sentido às suas vidas e que os ajude a encontrar aquela centelha de fogo que dá alento a um homem. Jeunesse tem problemas evidentes de primeira longa (como uma aposta nos grandes planos demasiado televisiva), mas tem uma atitude narrativa e um olhar que justifica ficarmos atentos ao que Julien Samani fará a seguir.