No sábado passado, este jornal tinha na primeira página uma foto de Donald Trump a abraçar a bandeira americana e um título que dizia: “Medo. Trump ainda pode ganhar”. E num editorial intitulado “Medo. De Trump”, o director justificava o título como resposta a um perigo iminente e avisava os leitores de que tal título tinha sido colectivamente discutido. Escrevo na véspera das eleições americanas, por isso não posso saber se o medo desapareceu do horizonte ou, pelo contrário, avançou na nossa direcção. Porém, nenhuma das duas hipóteses inibe ou invalida os argumentos com que irei discutir este título. Antes de mais, é preciso lembrar que a partir do 11 de Setembro se foi instalando no campo político das democracias ocidentais a denominada política do medo. Como é que um estado afectivo, pertencente ao campo das manifestações subjectivas, deixou de ser espontâneo e irracional, passando a residir no coração de uma relação política que atravessa os regimes e as ideologias? O medo como ideia política estava associado a todas as formas de tirania e à própria definição de totalitarismo, mas só recentemente, com o terrorismo islâmico e outros inimigos públicos mais difusos ou até fantasmáticos, passou a ter lugar nas democracias. É verdade que podemos situar o medo no decurso de uma história mais longa e dizer que a expressão “política do medo” é quase redundante porque desde Hobbes essa é a condição de toda a política. Mas fiquemos pela figura actual da política do medo, isto é, de uma forma de governar e controlar essa emoção, suscitando-a e administrando-a como um poder pastoral de aparência benevolente. Quando Passos Coelho anunciou para breve a vinda do diabo, estava a usar uma arma ligeira, quase lúdica (como a pistola de plástico do assaltante de bancos) da política do medo. Ora, quando lemos na primeira página do jornal esta palavra seguida de um ponto final - “Medo.” – temos de perceber que não se trata de um dado de facto (como seria se o jornal designasse a emoção objectivamente verificada na sequência de uma catástrofe), nem de uma instrumentalização do medo para fins eleitorais (um jornal português não pode ter a pretensão de influenciar um único leitor nos Estados Unidos), mas de uma expressão que tem ao mesmo tempo um valor exclamativo (equivalente a “ai que medo!) e o valor de um injunção, “tenham medo”. Como sabemos esta injunção foi sempre declinada pelos dirigentes da política do medo de uma maneira sinistra: “Tenham medo. Nós faremos o resto”. Potencialmente, o discutido título da primeira página corre o risco de trabalhar no sentido de suscitar as emoções, de atiçar o medo em vez de o refrear. E dá azo a que se veja nele a lógica da política do medo, aquela em que o medo é produzido por um poder que usa o “tenham medo” como forma de governar. Desta forma, o medo político é sempre um medo do medo. E é nessa condição que ele adquire um enorme poder de disseminação e se torna contagioso. Mas há ainda uma terceira hipótese, a única, do meu ponto de vista, que torna o título em causa legítimo: aquela que conjura o medo, não para o hiperbolizar nem para o administrar como faz a política do medo, mas para nos dizer, apelando à vigilância, que “há razões para ter medo”. Mas esta última interpretação não é a mais evidente à primeira leitura, já que na primeira palavra do título em causa, isolada por um ponto final (“Medo. Trump ainda pode ganhar”) o sentido mais imediato que se impõe é o da exortação a que nos habituou a cenografia contemporânea do medo.
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