A olhar o crowd-surfing para chegar a um novo lugar

Depois de Flora, Moullinex deu uma guinada. Elsewhere, o novo álbum, é trabalho de banda (que foi ele próprio) e resultado de "loucura controlada" em estúdio. Óptima surpresa.

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Moullinex, ou seja, Luís Clara Gomes, um dos fundadores da portuguesa Discotexas NIAN CANARD

Moullinex, ou seja, Luís Clara Gomes, um dos fundadores da portuguesa Discotexas, homem de muito caminho percorrido, quer nos sets DJ que leva aos quatro cantos do mundo, quer através dos trabalhos de remistura (Röyksopp, Devendra Banhart, Legendary Tigerman) e de produção que igualmente percorrem o globo, criou um álbum que é menos continuação do caleidoscópio de músicas de dança revelado em Flora, a estreia em longa duração, editada em 2012, e mais guinada em nova direcção – é aí que entra o crowd-surfing em concerto de Ty Segall, se bem que pouco ouçamos em Elsewhere que deva directamente ao rock’n’roller de São Francisco. Poderão confirmá-lo ouvindo o álbum, que será editado na próxima segunda-feira, ou assistindo ao concerto de apresentação do mesmo, dia 28, no Lux, em Lisboa.

No final de Março, vimos Moullinex e banda, onde encontramos Bruno Cardoso (Xinobi) ou Miguel Vilhena (Savanna) no Coliseu Micaelense, em Ponta Delgada, durante o Festival Tremor. Vestiram túnicas de elegância comprovada e trataram de fazer a festa como se desejava perante o adiantado da hora (entrávamos na madrugada). Fazer a festa, naquele caso, significou transportar-nos para um lugar em que os ritmos funk que desembocariam no disco-sound se cobriam do toque acetinado do yatch-rock ou em que viagens estelares amigas do prog tinham tanto delírio cósmico quanto impacto na pista de dança. Era o prenúncio para o que descobrimos agora.

Elsewhere é realmente o que o título indica. “Sentia-me muito confortável com a estrutura que existia no Flora. Se quisesse fazer uma malha disco, saía-me facilmente, mas eu desconfio daquilo que me surge facilmente. Então fui atrás daquele som." Aquele som a que se refere não é algo específico, pré-existente. “É uma idealização do som de estúdio dos anos 1960, quando o estúdio começou a ser utilizado como um instrumento, como um vocabulário diferente a utilizar no que se imaginava possível num disco."

Moullinex enquanto produtor de electrónica vaporosa. Moullinex líder de banda e produtor à solta com a sua imaginação no estúdio. Está tudo nesta bela surpresa que é Elsewhere: a house de guitarras e coros a hipnotizar de Cant’ stop; o soft-rock a ganhar carnalidade tropical (a flauta vem mesmo a calhar) em Things we do; a incrível luxúria funky (flauta novamente) a elevar-se até Marte, naturalmente, e a fazer a viagem de volta à Terra em Anxiety (já temos banda-sonora para o Verão); ou, na canção título, a visão de uns Kinks, em 1968, a sonhar com os Tame Impala de 2015.

“Não foi deliberado, mas a cena nu-disco [a que era habitualmente associado] tornou-se tão 'formulaica' que deixou de ser estimulante para mim. Já não havia muito mais a fazer ali”, diz-nos nos escritórios lisboetas da Universal, editora responsável pela distribuição portuguesa do álbum. E é então que nos fala do crowd-surfing num concerto de Ty Segall. “A própria cena underground de dança está hoje previsível e mesmo muito blasé”, confessa. “Em vez de saltar para esse comboio, preferi manter-me fiel a um feeling, aquele que tive quando comecei a fazer música de dança: ia ver um concerto de LCD Soundsystem e pensava para mim ‘está uma banda inteira a tocar em palco e é mais house do que o próprio house’. Foi isso que me fez seguir nesta direcção. Não teve nada de estratégico, não é um statement sobre o estado da arte."

Longe do mundo moderno
Ao contrário de Flora, gravado ao longo do tempo em vários espaços diferentes (“Talvez não soasse a uma manta de retalhos, mas na minha cabeça era uma manta de retalhos”), Elsewhere nasceu de um retiro, um jorro criativo de uma semana. Luís Clara Gomes pegou nos instrumentos e no material que conseguiu enfiar no carro, arranjou espaço para o cão e pôs-se a caminho de uma casa de família na aldeia de Granja de Penedono, equidistante de Vila Nova de Foz Côa e de São João da Pesqueira. Montou um estúdio improvisado na cozinha e, sem as distracções do mundo moderno (não havia rede para o telemóvel, a Internet estava inacessível), passou uma semana a gravar toda a base do que seria o novo álbum. “A rotina era acordar, ir directamente para o estúdio na cozinha e trabalhar, trabalhar, trabalhar. Ocasionalmente, fazia uma pausa para passear o cão”, recorda.

Não tinha qualquer canção composta, mas já tinha uma ideia do som que perseguia. “Queria fazê-las com guitarras, baixo eléctrico, piano eléctrico, e com a minha voz, em vez de recorrer a convidados, como no álbum anterior." Bases gravadas, novos elementos acrescentados à mistura e produção apurada nos meses seguintes, Luís conseguiu este equilíbrio, arriscamos, entre as qualidades terapêuticas do soft-rock de final da década de 1970 e a experimentação de estúdio mais arrojada. “Gosto desse lado do funk branco, chamemos-lhe assim, mas na abordagem ao estúdio agrada-me a loucura controlada. Porque mesmo quando pensamos em Sly Stone ou em George Clinton, a loucura era pensada. É o caso também do Todd Rundgren. Ao ouvir os discos, parece caótico, mas não pode ser. Naquela época não se podiam fazer edições em fita em dez minutos. Demoravam-se horas a montar aquelas loucuras, portanto tinha de ser tudo muito pensado. Um erro podia sair bastante caro. Gosto dessa loucura planeada e tentei pô-la no disco."

Moullinex continuará a assinar remisturas, continuará o seu trabalho de produtor, continuará a manter a Discotexas que fundou com Bruno Cardoso e Hugo Moutinho (Mr Mitsuhirato) em pleno funcionamento. Mas agora, e mais do que em Flora, também estará noutro lugar. Será homem de banda, rocker cósmico para a pista de dança, homem funky da era electrónica a bater o pé no tempo certo. Elsewhere é, asseguramos, um óptimo sítio para se estar.

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