Sabemos que fomos inoculados de maneira irreparável com o vírus da sociedade do trabalho e do regime de repouso e lazer que lhe corresponde, quando passamos a sofrer de um mal que Ferenczi e Karl Abraham, discípulos e colaboradores de Freud, diagnosticaram e ao qual deram um nome: a neurose de domingo. Eles perceberam nas manifestações sintomáticas que emergiam em certas pessoas, ao domingo, o efeito de uma perda infligida à vida pulsional e disseram que ela era semelhante ao que sente o morfinómano quando lhe falta a sua dose habitual. Para os dois psicanalistas, a relação do domingo e dos dias feriados com um agravamento temporário do estado nervoso e as flutuações libidinais podia ser verificada nos sintomas neuróticos de certos indivíduos. A neurose de domingo foi apresentada em 1919, na Revista Internacional de Psicanálise, em Viena. Dez anos depois, surgiu na Alemanha um filme colectivo cujo guião foi escrito por Billy Wilder, chamado Menschen am Sonntag (“Pessoas ao domingo”). O filme mostra um ambiente de felicidade nas ruas de Berlim, vivido pelos trabalhadores (melhor dizendo: os empregados do sector terciário, que era a maior parte dos assalariados berlinenses) no descanso dominical. A ideia de o mundo do trabalho conhecer o bem-estar e a felicidade do domingo — o contrário, portanto, da neurose — foi uma ideia nova na Europa que não durou muito. A neurose triunfou e não há hoje nenhuma teoria dos humores que não tenha em conta a afecção dominical que contagiou toda a gente. Não lhe serve nenhum daqueles nomes que serviram, desde a segunda metade do século XIX, para designar as “tonalidades afectivas” fundamentais da época: o spleen baudelairiano, o tédio, a melancolia, a angústia, a solidão. Tem características de todos estes humores, aliadas a uma certa astenia moral. Evidentemente, a introjecção deste mal — a neurose de domingo, tal como a conhecemos — deve-se a razões exteriores, culturais, sociais, colectivas. Esta modalidade neurótica não se deve ao facto de sentirmos aproximar-se a segunda-feira, dia de trabalho; deve-se antes ao facto de sentirmos que o tempo homogéneo global (que o capitalismo como um culto permanente, sem tréguas, instituiu) sofre uma interrupção. A burguesia assalariada da sociedade moderna não tem apenas direito ao repouso, tem também direito ao lazer (as rubricas da “cultura para o fim-de-semana”, dos jornais e revistas, são uma consagração deste direito). O repouso é ainda a continuação do trabalho, uma condição que o trabalho requer para poder continuar. O lazer é diferente: é um tempo “perdido” para o trabalho e para uma economia da utilidade. Ou melhor, seria um tempo perdido se não fosse captado como mais uma forma de mercadoria. O lazer-mercadoria é hoje um dos sectores mais rentáveis da economia. Reside aqui o grande valor económico da cultura, descoberto há muito tempo, mas só recentemente formulado com o rigor dos números porque antes se temia que exaltar a utilidade económica da cultura continha o risco de confundi-la com o que é útil. Ao repouso e ao lazer, é preciso acrescentar uma outra entidade, um terceiro termo: o ócio. Ao contrário do lazer, o ócio não é convertível em mercadoria. É do ócio que nascem, tradicionalmente, as letras, as artes, a filosofia. Ele obriga-nos a um confronto com a interioridade, é o tempo diante de nós. Ora, o domingo tornou-se o dia da estranheza, na medida em que concentra simultaneamente o repouso, o lazer e o ócio. E até o domingo proletário passou a imitar o domingo burguês. A neurose de domingo é o nosso sintoma universal.
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