A natureza é o sangue de Dersu Uzala
Kurosawa filma as estepes e as taigas como se elas nunca tivessem sido filmadas, como se ele fosse um explorador. Dersu Uzala é o seu mais singular filme.
Se a carreira de Akira Kurosawa não terminou na década de 1970 tal se ficou a dever ao apoio inesperado dos grandes arqui-inimigos da Guerra Fria, URSS (primeiro, com Dersu Uzala) e Estados Unidos (depois, com Kagemusha – A Sombra do Guerreiro, pela acção de Spielberg e Lucas, admiradores do veterano cineasta japonês). Mas esteve mesmo por um triz, na sequência do estrondoso falhanço de Dodeskaden, no princípio dessa década, projecto em que Kurosawa investiu muito (material e espiritualmente) e perdeu ainda mais. O rombo nas suas finanças pessoais foi grande, mas o rombo na sua auto-estima ainda foi maior: estão documentadas uma depressão e uma tentativa de suicídio. E quando todas as portas do Japão se fechavam para ele, subitamente alvo da desconfiança de todas as produtoras japonesas, o seu prestígio internacional veio em seu socorro, na forma dum convite da Mosfilm, um dos principais estúdios da URSS.
Assim nasceu Dersu Uzala, o filme “soviético” de Kurosawa – em rigor uma co-produção, porque também houve capitais nipónicos envolvidos, mas uma obra integralmente rodada em estúdios e paisagens da URSS, na zona mais oriental do seu vasto território. Kurosawa só aceitou a proposta quando conseguiu garantias de que não ia filmar uma “encomenda” nem seria enredado nas muitas burocracias em que a política de produção soviética era fértil; e depois escolheu, ou aceitou de entre as sugestões que lhe fizeram, filmar a adaptação de um livro que o marcara em adolescente, Dersu Uzala, o relato autobiográfico de Valdimir Arsenyev das suas explorações da fronteira asiática da Rússia e do encontro com um velho nómada, em princípios do século XX.
Não é só por isto que Dersu Uzala”é, muito provavelmente, o mais singular de entre todos os filmes de Kurosawa. O seu território de eleição era o Japão feudal, frequentemente tomado como palco para exercícios em torno do tema do poder e dos seus teatros – de entre os grandes cineastas japoneses, Kurosawa era o mais shakespeareano. Não raras vezes essa predilecção temática resolvia-se numa tendência para a abstracção, bem patente nos seus mais célebres dos anos 80, Kagemusha ou Ran. Em Dersu Uzala essa tendência para a abstracção, ou para a exposição de uns quantos elementos temáticos essenciais, não está ausente: pode-se dizer, utilizando grandes palavras, que se trata quase de uma parábola sobre o inevitável conflito entre a civilização e a natureza. E isto sim, é relativamente singular em Kurosawa, tornando Dersu Uzala um filme bastante difícil de emparelhar dentro da sua obra. Talvez algumas das suas preocupações “ecológicas” sejam reflectidas num filme muito mais tardio, A Rapsódia de Agosto, já nos anos 90, dominado pelos efeitos das explosões das bombas atómicas sobre o Japão, mas revendo o filme agora, e sobretudo pensando na relação mística, quase mágica, entre o protagonista e a natureza (o episódio com o tigre, já na parte final, por exemplo), ocorre que a “herança” de Dersu Uzala se manifesta mais em certos filmes de Miyazaki, aqueles em que encontramos uma semelhante “animação” (com e sem jogo de palavras) da natureza.
E a natureza é, finalmente, o sangue de Dersu Uzala. Kurosawa filma as estepes e as taigas como se elas nunca tivessem sido filmadas, como se ele fosse também um “explorador”. E de “explorador”, ou de pioneiro, têm muito certas cenas, como aquela do vendaval em que Dersu e o oficial russo constroem um abrigo para o vento, numa respiração que Kurosawa faz sentir como a de um “tempo real”, e onde está tudo: a força da natureza, mas também a força dos homens, e a força do cinema, a fazer confluir tudo com um fôlego que podia ser griffithiano ou stroheimiano.
Evidentemente, não é um filme optimista: pode ser visto como uma longa preparação para o desaparecimento do velho Dersu, e do mundo que ele transporta, forçosamente sacrificado em nome da civilização e das regras que lhe são inerentes. E é por isso que o filme, depois de tanto tempo nas florestas e nas planícies, nunca parece tão estranho como naquele segmento final em que Dersu é trazido para a cidade, numa desambientação sempre perplexa. Os valores são outros e são-lhe incompreensíveis. O final do filme equivale a uma espécie de “morte da natureza”, a uma extinção de uma harmonia selvagem doravante impossível, num espelho do último grande ímpeto “colonizador” da viragem de XIX para XX, dado num tom tão elegíaco como fatalista.