Uma herança de diamantes e pérolas
Talvez nenhum outro músico pop tenha escrito tantas canções perfeitas, talvez ninguém tenha sido tão excessivo e tão contraditório. Prince Rogers Nelson morreu, mas antes ensinou-nos a dançar.
No final de 1989 Prince Rogers Nelson editou um single de 19 minutos, Scandalous, em que surgia a voz de Kim Basinger. O que a faixa tinha de escandaloso não era a duração exorbitante ou a prestação vocal da actriz de Nove Semanas e Meia, antes o romance que cantor e ex-modelo viviam em segredo. Tornou-se uma espécie de piada entre os adolescentes: se Prince, com 1,58m, conseguia Basinger, qualquer homem conseguiria qualquer mulher. De exemplo de sexualidade irreprimida, Prince passou, pelo menos num certo imaginário juvenil, a exemplo de superação – daí a absoluta perplexidade quando esta quinta-feira se confirmou que era dele o corpo encontrado morto no elevador da propriedade de Paisley Park, em Minneapolis. Dera entrada no hospital na semana passada, mas rumores acerca do seu estado de saúde foram então desmerecidos – era apenas uma gripe, e dias depois, no último sábado, o músico de 57 anos dava uma festa na sua propriedade, orgulhoso da nova guitarra roxa: “Esperem uns dias antes de desperdiçarem as vossas orações”, disse então aos presentes.
Depois de meia hora ou mais de especulação – a polícia começou por adiantar que estava a acompanhar o caso de uma morte em Paisley Park –, a representante do músico comunicava o seu falecimento à Associated Press: "É com profunda tristeza que confirmo que o lendário e icónico Prince Rogers Nelson morreu.” A causa da morte não foi revelada.
Para trás ficaram 37 anos de carreira, mais de 100 milhões de discos vendidos, sete Grammys, um Óscar de melhor banda sonora original (por Purple Rain, em 1985), alguns escândalos, certa pulhice, birras que não zangaram o mundo (como querer mudar o nome para ou O Artista Anteriormente Conhecido como Prince), uma tragédia (possivelmente duas) e pelo menos uma dezena de refrãos que qualquer indivíduo urbano entre os 20 e os 60 anos conhece, muito à conta do seu talento para desrespeitar os muros em torno da soul, do funk e do rock e fazer de todos os géneros o seu território, onde cultivou uma potentíssima arma de encantamento maciço: ser Prince. Nem Madonna (que ontem se disse “devastada”), talvez só Michael Jackson, foi tão Eu-Mesmo como Prince – mas há razões para aceitar a tese de que Prince foi, de todas as estrelas pop nascidas na era-MTV, indubitavelmente, a melhor e durante mais tempo.
A primeira vez que Prince foi Prince terá sido em 1980, quando lançou Dirty Mind, o seu terceiro disco de estúdio, e o impacto, admitamos, foi visual: surgia na capa em tronco nu e de cuecas, inaugurando uma estética de androginia que cultivou ao longo dos anos e bastas vezes chocou os mais conservadores. Vê-lo-íamos décadas a fio pintado, com cabeleiras e trajes efeminados, como quem tiver visto o vídeo de Kiss se recordará, e sempre de saltos altos. Também nascia aí a sua persona sexual, inevitavelmente excessiva – sexualidade explícita, note-se, e logo no título das canções (Head, por exemplo, é uma abreviatura cândida de felação). Veríamos mais disto ao longo dos anos, em particular nos vídeos de Sexy MF e de Cream, que tem declarados contornos orgiásticos (e pode ser lido como um manual de boas práticas sexuais).
Prince era um excessivo e Dirty Mind anunciava a chegada do excesso – que aliás marcaria os anos 80, década da qual Prince foi um símbolo. Essa é outras das marcas de Prince: tudo – a roupa, os solos, os refrãos, os vídeos – tinha de ser levado ao extremo. Numa época em que as canções não podiam exceder os três minutos, ou não passavam na rádio, Prince estendia-as aos sete (como na edição em single de Controversy).
Dirty Mind, já agora, marcou o nascimento de um som: uma espécie de funk sintético cruzado com glam-rock, por assim dizer, que serviu de fundação sonora de Prince. É essa a matriz por trás de Purple rain e When doves cry, por exemplo (ambas de Purple Rain, de 1984), só para citar dois êxitos massivos. Dirty Mind chegaria ao sétimo lugar no Top Black Albums da Billboard, mas apenas ao 45.º da classificação geral. Em breve essa distinção deixaria de existir e Prince tornar-se-ia uma estrela global. No ano seguinte saía Controversy, que chegaria à platina e ao milhão de discos vendidos; Prince podia ter feito apenas a faixa-título, um extraordinário exercício repetitivo e encantatório, e já seria suficiente.
Mas Prince fez muito mais do que isto – em 1984 iniciava-se uma sequência infernal de discos esmagadores: a Purple Rain seguiram-se, na lista de obras-primas, Parade (1986), Sign O’ The Times (1987) e Lovesexy (1988). É difícil explicar como tamanha qualidade se manifestou perante tanta prolixidade. Prince compunha tudo e gravava praticamente todos os instrumentos – tinha aliás um estúdio caseiro, onde Pedro Abrunhosa recorda ao PÚBLICO ter gravado o seu segundo álbum, Tempo (1996), com a banda do músico, a New Power Generation, depois de ter enviado uma maquete para Paisley Park e dali ter recebido um convite para aparecer. Era, diz, “uma espécie de santuário”, à altura desse “multi-instrumentista notável”, “um clássico” que para Abrunhosa cruza “James Brown e Jimi Hendrix num só”: "Há um antes e depois do Purple Rain na vida de toda a gente; na música há um pré e um pós-Prince”, sintetiza.
Essa actividade frenética, da casa-estúdio de Paisley Park para o mundo, bateu frequentemente com as regras da indústria: a sua editora, a Warner, chegou a querer que ele editasse menos discos, o que o levaria a mudar o nome artístico em 1993. Só em 2000, quando o contrato com a Warner expirou, é que Prince voltou a chamar-se Prince – sem que nunca tenha deixado de o ser.
Mais recentemente, afirmou-se também com a marcação de concertos quase de surpresa, rejeitando as pressões da Internet, limitando ao máximo as entrevistas e presenças mediáticas, e associando-se a serviços de streaming como o Tidal como reacção à massificação da divulgação musical na Internet. Também nisso constituiu uma inspiração, como sublinha Kalaf Ângelo, músico dos Buraka Som Sistema, destacando “a forma heróica como Prince enfrentou as grandes editoras para reclamar os seus direitos” e “defendeu a sua música no sentido mais puro". Já Paulo Furtado (The Legendary Tigerman) prefere reafirmar que Prince foi “o único músico da sua geração a compreender a essência da soul, do funk e de toda a música afro-americana" – e "com uma capacidade de reformulação e de reinvenção impressionantes” que está por repetir.
Muitas vezes desde que lançou Dirty Mind precisámos de facto de palavras novas para descrever Prince. Na sua fase genial e inalcançável, entre 1980 e 1991, editou nada menos do que oito discos extraordinários que inventaram uma nova cosmogonia – nunca é de mais repetir que o jazz, o psicadelismo, o funk, a soul, o rock e a pop uniram-se ali, e que isto parecia à época impensável. Os géneros não se cruzavam, preto era preto e branco era branco. Não no mundo de Prince.
E no entanto, enquanto levava ao extremo as suas experiências (musicais, capilares, cosméticas), Prince, o mais estranho dos seres humanos, nunca deixou de estar próximo do ser humano comum e continuou a disparar single de êxito atrás de single de êxito: Purple Rain ficou marcado por Purple rain e When doves cry, Parade por Kiss, Sign O’ The Times por U got the look, If I was you girlfriend ou a faixa-homónima, que mostra que existia um outro Prince, não apenas obcecado com o corpo mas também preocupado com o estado do mundo (sobre uma linha de baixo minimal mas arrasadora, traçava um soberbo travelling que olhava a actualidade da época, do crack aos desastres nucleares).
Onde começa e acaba o génio de Prince pode ser discutido: uns dizem que o início jaz em 1980, com Dirty Mind, outros em 1984, com Purple Rain; e haverá quem defenda que acabou em 1988, com Lovesexy, sendo que muitos bradarão que durou pelo menos até 1991, ano em que editou Diamonds and Pearls. Mas os argumentos em favor de Diamonds and Pearls são demasiado fortes, em particular se relembrarmos os seis singles de sucesso retirados desse disco. São 11 anos de composição sem freios – grandiloquente, abundante em orquestrações, contra as regras da indústria. Onze anos no topo, em que atirou vários discos inteiros para a gaveta, sendo que um deles, o Black Album, ganhou um estatuto mítico apenas igualado por Smile, dos Beach Boys.
No fundo despedimo-nos de Prince em 1991, quando alcançou a glória de produzir seis singles de sucesso, numa demonstração absurda de como combinar o arrojo inventivo e gancho melódico. Era impossível ir mais longe na arte de desbravar caminho e angariar devotos – e a partir dali Prince não criou um único disco que merecesse entrar na galeria dos mais conseguidos, e isto mesmo tendo em conta que houve singles como The most beautiful girl in the world (o segundo de maior sucesso na sua carreira, lançado em 1994). E como provocar ainda mais depois do vídeo de Cream?
O resto são as histórias que compõem o mito, em particular as mudanças de nome. Em relação aos dois casamentos (que acabaram sempre em divórcio), foi sempre discreto e mais ainda em relação à morte do seu único filho (em 1996), que poderá ajudar a explicar a posterior conversão religiosa (tornou-se Testemunha de Jeová) e o desaparecimento da vida pública, colmatado com extraordinários desempenhos em palco.
Prince estaria a agora a escrever uma biografia (os direitos tinham sido comprados pela editora Random House, que anunciara a publicação para 2017), o que aos nossos olhos de comuns mortais parece tarefa impossível: seria necessário inventar novas palavras para contar esta vida. Havia demasiada criatividade naqueles 158 centímetros. Tanta que não nos ocorre enclausurá-la em nenhum termo que conhecemos. Chamemos ao homem que nos ensinou a dançar, ao homem que nos mostrou que as barreiras caem, e que as Kim Basinger são possíveis, Sua Real Purpureza.
com Joana Amaral Cardoso e Isabel Salema