Conhecem-se agora, com algum detalhe substantivo, os traços gerais do Plano Nacional de Cinema, que pretende introduzir as crianças em idade escolar (ensino básico e secundário) ao cinema e à sua história. Para que, nas palavras do Secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas, tal como citadas no PÚBLICO do dia 22 de Setembro, os adolescentes "saiam da escola a saber que o cinema não começou com Tarantino, nem há dois ou três anos, que tem uma história e um património comum". Nobilíssima intenção, num país onde a "iliteracia" cinematográfica é grande, demasiado grande, e o reconhecimento do cinema como expressão cultural, histórica, "patrimonial" em sentido lato, cai excessivas vezes perante o incentivo ao "consumo" dos filmes como mero, e inconsequente, entretenimento (incentivo esse que hoje está, basicamente, por todo o lado). Explicar-se-á este fenómeno - que por exemplo aqui perto, em Espanha, não se reproduz exactamente da mesma maneira - apenas por uma questão de "educação", de educação formal (ou falta dela)? Ou há outras razões, mais fundas, decorrentes do "ecossistema" sócio-económico-cultural português, e das suas gritantes e históricas debilidades, nomeadamente a nível infra-estrutural? Pensar em quantas cidades portuguesas, fora Lisboa e Porto, existe exibição regular de cinema, e naquelas em que existe, pensar que cinema é exibido, e em que condições.
Em todo o caso, decidiu-se fazer do cinema uma matéria de educação, e decidiu-se bem. Quanto mais cedo as crianças forem expostas ao cinema, melhor. Um miúdo de 4 ou 5 anos enfiado numa sala para ver um filme mudo de Chaplin ou de Buster Keaton reage de uma maneira espantosa, e para muitos adultos - mesmo, às vezes, professores - completamente inesperada. Apesar dos bombardeamentos de televisão, desenhos animados e toda a sorte de imagens e ecrãs domésticos a que muitos, nessas idades, já foram submetidos, a maioria ainda conserva um olhar suficientemente despoluído para, em frente a um Chaplin ou a um Keaton, ser de facto um "contemporâneo" dos espectadores que viram esses filmes em estreia nos anos 10 ou 20 do século passado. Ao contrario do que se diz, a juventude não está perdida, nem mesmo para o cinema - mas o cinema tem que fazer alguma coisa para a encontrar, e este PNC pode significar, de algum modo, o reconhecimento desta necessidade. Mas transformar o cinema numa matéria curricular, num assunto de escola, tem os seus riscos. Ninguém se fez cinéfilo na escola; pelo contrário, a cinefilia tradicional (leiam, e vejam, Truffaut, entre outros) constituiu-se frequentemente contra a escola. Fugia-se da escola (e da família) para o cinema, que representava um espaço de liberdade "extra-curricular". Desintegrava e desordenava aquilo que a escola integrava e ordenava. Conseguirá o PNC ter a maleabilidade suficiente para não anular esta contradição, e não desarmadilhar por completo o efeito de "bomba" que o cinema pode ter para quem o descobre? Palavra, aqui, aos professores e formadores que trabalharão directamente, no terreno, com os miúdos. Será deles a responsabilidade de não deixarem que Ford ou Eisenstein se tornem só em mais um "Eurico, o Presbítero" a maçar a cabeça dos garotos. Tanto mais que ninguém quer cinéfilos à força. O direito a estar-se nas tintas para o cinema deve ser preservado, por maioria de razão a partir do momento em que o cinema entra na escola.
O cinema entra na escola, ou a escola entra no cinema? É uma pergunta que, pelo que se pode ler na sequência da apresentação do Plano na semana passada, ainda não tem uma resposta muito clara. Os miúdos verão os filmes predominantemente na sala de aula - obviamente em suportes não-originais, como o DVD - ou em verdadeiras salas de cinema? O contacto com os filmes é importante, mas não o é menos o contacto com a "experiência" para que eles foram durante cento e tal anos, maioritariamente pensados: a sala de cinema, onde está em silêncio, no escuro, e na imobilidade, e todo o mundo se reduz à janela enorme aberta em frente dos olhos. Para miúdos de agora, é verdadeiramente uma "experiência da atenção", com benefícios que ultrapassam a simples relação com o cinema. É fundamental que se leve a escola para a sala, ou fica-se só a meio caminho. É mesmo mais importante que discutir a lista dos filmes que serão potencial objecto de estudo, para mais não sendo uma lista fechada ou definitiva. Embora ambas as questões (a "experiência" e a lista) se entronquem: ainda há na lista, demasiadas coisas demasiado parecidas com que as a que os miúdos facilmente acedem, na televisão, na internet, ou nos multiplexes. Devia haver mais "choque", mais mergulhos em territórios completamente desconhecidos e de difícil acesso. Viria compor a "experiência", a fortalecer o que nela pode funcionar como total revelação. Oxalá isto venha acontecer.
E se tudo correr bem, e de repente houver milhares de miúdos espalhados pelo pais inteiro interessadíssimos no cinema e na sua história? Com a miserável programação de cinema das televisões (que canal mostrava hoje Straub/Huillet às 9 da noite, com introdução de João Bénard da Costa, como acontecia na RTP dos anos 80?...), a progressiva destruição do parque de salas, fora dos grandes centros urbanos mas também neles (em Lisboa ou Porto quase tudo se reduz a cinemas de centro comercial e à agenda dos multiplexes), a inexistência de circuitos alternativos sólidos e consistentes, capazes de cobrir o território de forma minimamente sistemática. Com isto tudo, como é que um miúdo de Santarém, Vila Real ou Beja, vai dar azo à sua recém-descoberta paixão pelo cinema? A resposta é simples: não vai, não tem como. Podemos ser optimistas: uma nova legião de cinéfilos de Norte a Sul será eventualmente um motor para começar a mudar este estado de coisas. Também podemos ser pessimistas: essa nova legião de cinéfilos definhará rapidamente, pela manifesta incapacidade deste país para corresponder à sua paixão.