Uma arquitectura da liberdade
Uma arquitectura relacional, dialéctica, aberta à miscigenação cultural e capaz de responder às dificuldades circunstanciais. Assim se poderá definir, em traços gerais, o trabalho desenvolvido pela dupla francesa Anne Lacaton (1955) e Jean-Philippe Vassal (1954), de que se pode destacar o recente projecto de renovação do Palais de Tokyo - "'site' de criação contemporânea", em Paris. Vassal profere hoje, na Faculdade de Arquitectura do Porto a conferência "Il Fera Beau Demain", numa iniciativa que conta com o apoio do Instituto Francês e através da qual se pretende lançar uma reflexão não só acerca do espaço público e "do modo como se poderá fazer arquitectura nos próximos anos", mas também sobre "o papel do arquitecto relativamente a novas situações".Em 2001, quando participou, no Porto, no colóquio "Cidade em Performance". Jean-Philippe Vassal reteve sobretudo os "debates acerca da maneira de apreender a cidade". Uma nova realidade apontada pelo arquitecto francês é aquela que surge do facto da arquitectura e do urbanismo serem disciplinas cada vez mais interpenetráveis: "Falamos de uma situação onde se passa de uma certa tendência a fazer objectos sobre uma página em branco para outra onde se trabalha com uma complexidade, uma cidade confusa a partir da qual tentamos encontrar as chaves de modo a torná-la mais legível, mais generosa, mais apta a produzir uma felicidade simples nas pessoas."Em 1996, no âmbito da renovação da Praça Léon-Aucoc, em Bordéus, França, Lacaton e Vassal propuseram aos eleitos municipais que os haviam contratado a utilização do dinheiro destinado aos trabalhos num outro projecto, porque o espaço público era, em si, de uma beleza intocável, apenas necessitando de intervenções de manutenção. Segundo Vassal, este "é o exemplo de uma atitude que pode ter hoje o arquitecto, quer dizer, ele não deve contentar-se em fazer uma calçada, ou em mudar o design de um banco público, ele deve antes colocar a questão, 'por que é que me pedem isto?' e considerar que um lugar não é apenas feito de materiais, de bancos, de candeeiros; ao nível do espaço público, o lugar é um espaço ocupado por pessoas, famílias, que o habitam: é essa matéria, e não apenas a matéria inerte dos materiais, que se tem de trabalhar".Relativamente ao projecto de Bordéus, Vassal acrescenta ainda que, após ter observado o lugar atentamente, lhe pareceu ter encontrado a resposta certa na manutenção da praça: "Era necessário limpá-la, tratar uma doença das árvores que fazia tombar resina sobre os bancos impedindo, assim, as pessoas de se sentarem neles durante dois meses da Primavera; a arquitectura também é isto." "O espaço público deve ser habitado"Um exemplo distinto é o da renovação do Palais de Tokyo, que conceptualmente se inspira na Praça Jemaa el Fna, em Marrocos. Localizado no bairro XVI, este edifício, dos anos 30 e com fachada neoclássica, encontrava-se abandonado: "O interior estava completamente demolido; era uma espécie de carcaça envolvida por um exterior monumental e limpo." Lacaton e Vassal tinham um orçamento reduzido, facto que dificultava algumas soluções, contudo, como nota o francês, este é um dos problemas recorrentes da arquitectura: "Como superar uma situação aparentemente difícil, delicada, e transformá-la em algo de positivo com um mínimo de intervenção?"Neste caso, um centro de arte contemporânea, a dupla achou que a solução estava na resposta ao problema "como produzir arquitectura num espaço de liberdade?". Segundo Vassal, a criação de um dispositivo que permitisse a criação, desenvolvimento e aparecimento de outras coisas foi a saída encontrada: "Como é que a praça Jemaa el Fna, que não foi construída por nenhum arquitecto nem por nenhum urbanista, se tornou num lugar de espectáculo permanente, onde há arte, acrobatas, músicos, encantadores de serpente, poetas? Aqui não é o espectador ou o espectáculo que se adapta à circulação das viaturas é o inverso, são estas que evitam o espectáculo."Do Teatro Municipal Rivoli, no Porto, onde decorreu a conversa, observa-se o lento movimento dos transeuntes, que atravessam a praça D. João I. É possível habitar este lugar? "O espaço público deve ser habitado; por que não realizar ali uma refeição? O que aqui se passa é um problema de habitabilidade do espaço público", sublinha Vassal. E acrescenta: "Diz-se que há o espaço público e há o espaço privado e que este não tem nada a ver com o outro; ou seja, recusamo-nos a ver as interacções; o que me parece interessante é que esta praça é um espaço livre com um banco, comércio, um edifício de escritórios e um teatro; como é que os habitantes desta praça podem, num dado momento, utilizar este vazio?" É o exemplo de Beaubourg, em Paris - no concurso haviam cerca de 1000 projectos, o que era inacreditável; foi o único projecto onde se dizia 'damos todo este espaço, mas ficamos com metade, porque o espaço vazio que vamos criar será tão importante como o espaço que vamos preencher'; durante muito tempo esse espaço livre foi um lugar de reunião, de discussão, onde os artistas, de maneira informal, faziam coisas." O arquitecto termina: "Quando existem espaços livres temos uma máxima potencialidade; os espaços vazios, numa cidade, são espaços de liberdade"."Il Fera Beau Demain", conferência por Jean-Philippe VassalFaculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, às 18h