Sofia Coppola perde a cabeça com Marie Antoinette
A jovem realizadora americana já não é rainha por estes dias. Cannes vaiou o seu novo filme, exibido na competição.
Do nosso enviado, Vasco Câmara, em Cannes
Sofia Coppola não sabia que Marie Antoinette, o seu filme sobre Versalhes e a corte de Maria Antonieta e Luís XVI, acabara de ser vaiado no final da projecção, em competição. Um jornalista deu-lhe a notícia, do género: "E agora?". Uma intérprete, Marianne Faithfull (faz de Maria Teresa de Áustria, mãe de Maria Antonieta), veio em socorro de Sofia: "Está enganado. Os apupos foram com O Código Da Vinci" (isso já foi há uma semana, Marianne...). Sofia recompôs-se. "É decepcionante saber isso."
Kirsten Dunst (a Maria Antonieta do filme, que tinha 14 anos quando foi enviada para Versalhes para casar com o futuro Luís XVI) abraçou-a. "Mas eu gosto do teu filme."
O moderador da conferência de imprensa, o crítico Michel Ciment, deu o seu contributo de autoridade e passou a mão pelo ego abalado de Sofia. "Há todo um historial de grandes filmes vaiados em Cannes. De forma geral, esses apupos são muito burgueses. E os franceses são muito sensíveis quando se trata da sua própria História."
Há algo de cruel no facto de a mesma imprensa que a coroou, precipitadamente, como rainha de Cannes antes de o festival começar, arrancar agora a Sofia a coroa e o ceptro. Michel Ciment poderá ter razão quando aponta para o facto de o partis-pris do filme - um retrato de Maria Antonieta enquanto jovem, perdida nos corredores de Versalhes, não conseguindo provocar o interesse do marido, entediada e escapando-se para as festas e compras como qualquer jovem de hoje - não ser a imagem da odiosa e decadente corte que qualquer francês republicano que se preze quereria ver retratada (mas seria isso um filme de Sofia Coppola?). Ainda por cima, com orçamento de 40 milhões de dólares, com 600 figurantes e com autorização para filmar em Versalhes. Por isso Sofia foi bombardeada: o que é que sabe de Versalhes? Como é que se posiciona politicamente perante a Revolução Francesa? Acha que há alguma relação entre a corte do século XVIII, afastada do povo, e os poderes e os governantes de hoje?
"Não fiz um filme político sobre a Revolução Francesa", respondeu Sofia, sempre demasiado pequena perante as perguntas. Aliás, a tudo o que pudesse levá-la a alguma implicação política, Sofia, educada, disse não. "O filme é um retrato de Maria Antonieta. Inicialmente, ela era, para mim, um símbolo de decadência e de frivolidade. Depois de ler o livro de Antónia Frasier [que o filme adapta], e depois de outra série de interessantes pesquisas que fiz, fiquei a saber mais sobre esta miúda que foi para Versalhes aos 14 anos e se tornou mulher. O século XVIII francês sempre me interessou. E, quando comecei a imaginar a personagem, pensei logo em Kirsten Dunst. Há um lado lúdico em Kirsten, que também se espande para algo de mais profundo, e penso que foi essa a evolução como mulher de Maria Antonieta" (Kirsten confirma: diz que Sofia é a única realizadora que a filma tal como ela é - Kirsten esteve em As Virgens Suicidas).
Versalhes no século XVIII, com guarda-roupa concebido por Milena Canonero (Barry Lyndon), como se fosse um liceu de hoje onde um adolescente entra, perdido, sem referências? Quando a rainha vai às compras, para combater o tédio, e a câmara expõe uma orgia de sapatos desenhados por Manolo Blahnik, ouve-se I want candy, dos Bow Wow Wow. Quando se diverte com um amante, são os ritmos tribais de Adam and The Ants de Kings of the wild frontier. Os passeios a cavalo por Versalhes fazem-se com Ceremony, dos New Order. E as festas, ao som dos The Strokes, podiam ser qualquer festa temática de um clube da moda do século XXI: daquelas em que o tema é, por exemplo, o fetiche.
Sofia confirma: Marie Antoinette é o final da trilogia que ela dedicou à adolescência feminina e à passagem para a idade adulta, cujos tomos anteriores foram As Virgens Suicidas e O Amor É um Lugar Estranho.
Menorizando a indignação republicana dos franceses, é capaz de ser esta "Versalhes pós-punk", este equilíbrio tentado entre a reconstituição histórica e as ressonâncias com os tempos de hoje, que sabota a consistência a Marie Antoinette. É As Virgens Suicidas outra vez, sim, mas o "filme de época" impõe-se de forma convencional e isso rouba toda a graça e melancolia à história de uma adolescente perdida - que, por acaso, era uma rainha que foi decapitada. Pôr "pós-punk" na banda sonora e o resto dos anacronismos, como os actores falarem em inglês, em francês ou em inglês com sotaque francês, não disfarça as coisas, ainda piora: parece um capricho de um grupo de jovens americanos que tiveram autorização para se divertirem no Palácio de Versalhes, quando era suposto ser um filme sobre um rei e uma rainha, jovens, perdidos no protocolo, rodeados de rituais, de muita gente, de solidão e dos problemas de crescimento.
O plano final de Marie Antoinette, um plano fixo do quarto real vandalizado, imobiliza o que Marie Antoinette poderia ter sido: um filme sobre tudo o que se escapa.
Tarde de mais. Sofia Coppola já não é rainha por estes dias.