Quando os bailarinos usam capuz, não tutus
A Ballet Story é a coreografia que Victor Hugo Pontes criou para Zephyrtine, peça orquestral de David Chesky em estreia mundial hoje
A folha em branco que Victor Hugo Pontes pousa esta noite em cima do palco do Grande Auditório do Centro Cultural Vila Flor conta uma parte da história por trás de A Ballet Story, mas não a história inteira. Foi mais ou menos assim, em branco, que aceitou o convite do GuiDance - Festival Internacional de Dança de Guimarães para criar uma coreografia a partir de Zephyrtine, a peça orquestral que o americano David Chesky (Miami, 1956) compôs por encomenda da Fundação Orquestra Estúdio e que hoje será tocada ao vivo pela primeira vez, sob a direcção do maestro Rui Massena, em rigorosa estreia mundial. "Deram-me a obra tocada em MIDI e achei tudo muito estranho. Fiquei a pensar: e agora, faço o quê com isto? E então escrevi ao compositor", explica o coreógrafo ao P2. Quando a resposta chegou, Victor Hugo Pontes ficou subitamente a sentir-se uma espécie de homem que sabia de mais: "Por trás da peça orquestral, havia um libreto, também do David Chesky, sobre a fada Zephyrtine e o mundo fantástico para onde ela transporta um miúdo. Era uma obra para crianças, com uma dramaturgia demasiado presente. Decidi: vou esquecer o libreto, tomar a música como ponto de partida e concentrar-me no corpo."
Concentrar-se no corpo a partir de uma peça orquestral com tantas figuras "clássicas" obrigou o coreógrafo a desviar-se do seu território habitual, uma dança muito próxima dos códigos de teatro (situação, personagens, texto, desenlace), e a aproximar-se, ainda que muito subversivamente, do ballet, um programa que de resto determinou o título.
Quando A Ballet Story começa, não vemos qualquer vestígio da história da dança naquelas sete figuras com capuz que se deslocam lentamente em cima de um plano inclinado. Mas logo os bailarinos partem em direcção a solos e duetos, para depois se reagruparem num corpo de baile, como em qualquer Lago dos Cisnes. "Todos temos presente essa memória do ballet clássico. Mesmo quem vem do hip-hop ou do b-boying, como alguns dos intérpretes que eu quis ter nesta peça para ver como é que corpos com outra formação, e com outra configuração, se adaptam àquele movimento, que tem qualidades muito específicas de rigor e formalidade", nota Victor Hugo. O movimento de A Ballet Story, repetitivo, precário, imperfeito, às vezes espasmódico, está muito longe dessa tradição, ainda que tenha sido por aí que os ensaios começaram, com o visionamento de alguns bailados do repertório clássico. "Quando eu ponho os bailarinos a fazer corpo de baile, não estou à espera de um uníssono perfeito. As diferenças de formação, de elasticidade, de qualidade de movimento manifestam-se e isso interessa-me. Foi quase como se eu quisesse desrespeitar todo o manual de instruções do ballet. Até nisto: em vez de ilustrar a história, quis ocultá-la ao máximo", insiste o coreógrafo.
É aqui que voltamos à metáfora da folha em branco, desde logo sinalizada em palco pelo cenário que F. Ribeiro criou originalmente para As Três Irmãs (uma criação de Nuno Cardoso para o Ao Cabo Teatro, de que o coreógrafo também faz parte) e que Victor Hugo reaproveitou. "Começo sempre as minhas peças pelo espaço, não sei se é por vir das artes plásticas. Tenho de ter um papel para pôr as coisas em cima", diz. A folha em branco de F. Ribeiro absorveu algumas imagens do libreto (as criaturas fantásticas, algo boschianas, de uma sequência central, a floresta de peixes herdada do libreto original), e, por causa da sua acentuada inclinação, sobrepôs-lhe outras. Esse lado do conflito com a verticalidade foi determinante, admite o coreógrafo, embora tudo se passe como se a inclinação não colocasse àqueles corpos qualquer dificuldade excepcional. Acima de tudo, os corpos de A Ballet Story são corpos que querem dançar: "A dança contemporânea tornou-se uma coisa muito conceptual, muito estática. E eu gosto muito de ver dançar. Acho que foi por isso que quis criar uma peça de dança do princípio ao fim."
É, se é que o tamanho interessa, a maior peça em que Victor Hugo Pontes já pôs as mãos. "Com a orquestra em cima, isto é mesmo uma coisa muito grande." Grande como um ballet clássico, sem pontas mas com ténis, sem tutus mas com capuz.