Museu de Imprensa evoca 240 anos de revistas culturais
Com essa precisão um pouco prolixa característica do final do século XVIII, o cónego portuense Francisco Bernardo de Lima baptizou a sua revista com um título extenso e duvidosamente pontuado: "Gazeta Literária ou notícia exacta dos principais escritos, que modernamente se vão publicando na Europa, conforme a análise, que deles fazem os melhores críticos, e diaristas das nações mais civilizadas". O primeiro número saiu em 1761 e a publicação teve vida breve, encerrando logo no ano seguinte. Foi o bastante, ainda assim, para que a posteridade consagrasse este cónego secular de S. João Evangelista como fundador e director da primeira revista literária portuguesa. A compilação da revista, em dois volumes anuais, pode agora ser apreciada no Museu Nacional de Imprensa, no Porto, que lhe concede lugar de destaque na exposição "240 Anos de Imprensa Literária e Cultural", inaugurada no passado dia 18 pelo ministro da Cultura, Pedro Roseta, e que deverá manter-se patente até ao final do ano. A mostra, que constitui a sucessão natural da anterior exposição que o museu dedicou aos 250 anos do jornalismo científico - contabilizados a partir da publicação, também no Porto, em 1850, do "Zodíaco Lusitano-Délfico" - dá apenas a ver uma selecção das mais de cinco mil revistas que foi possível inventariar, mas a listagem total pode ser consultada pelos visitantes através de uma base de dados interactiva. E até ao encerramento da exposição, algumas das revistas patentes irão sendo regularmente substituídas por outras. Se pouco se sabe de Bernardo de Lima - nasceu em 1727, no Porto, mas há referências contraditórias quanto à sua morte, que terá ocorrido em 1764 ou 1770 -, já outras revistas expostas tiveram como principais responsáveis alguns dos principais vultos da cultura portuguesa dos séculos XIX e XX, a começar pelo "Cronista", um "semanário de política, literatura, ciência e artes" fundado em Lisboa, em 1827, por Almeida Garrett. Também na capital, precisamente uma década mais tarde, Alexandre Herculano lançava "O Panorama", um "jornal literário e instrutivo da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis". Já na segunda metade de Oitocentos, também os dois maiores romancistas portugueses do tempo, Camilo e Eça, dirigiram no Porto, respectivamente, a "Gazeta Literária do Porto" (1868) e a "Revista de Portugal" (1889-1892). Mas é já no início do século XX, em 1915, que será lançada a revista que desencadearia mais amplas e duradouras consequências no panorama geral da cultura portuguesa: "Orpheu", dirigida a partir do segundo e último número por Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Além dos dois números de "Orpheu", a exposição inclui ainda o primeiro exemplar da "Athena", que Pessoa lançou em 1924, com Ruy Vaz. Se as primeiras revistas literárias tenderam a veicular, sobretudo, perspectivas ideológicas - já a "Gazeta Literária" de Bernardo de Lima divulgava Voltaire e afrontava os nacionalismos da época com a tese de que o verdadeiro patriota era o cidadão do mundo -, a partir da segunda metade do século XIX começaram a surgir publicações que estiveram na origem, ou foram o reflexo, de verdadeiros movimentos literários ou de simples tertúlias. Ficou célebre a contenda, no último quartel de Oitocentos, entre duas publicações rivais promovidas por estudantes da Universidade de Coimbra: a "Boémia Nova", de António Nobre, e a "Insubmissos", de Eugénio de Castro, que discutiram azedamente quem fora o primeiro autor, em Portugal, a libertar o verso alexandrino da sua acentuação ortodoxa. Na primeira metade do século XX, entre as revistas com objectivos que ultrapassavam o âmbito estrito da literatura e não escondiam a sua ambição de intervir nos planos social e político, contavam-se, para citar apenas duas das mais relevantes, "A Águia", do Porto, e a "Seara Nova", de Lisboa. Das que constituíram órgãos mais ou menos assumidos de movimentos literários, podem apreciar-se nesta exposição, além da paradigmática "Orpheu", revistas como a "Presença" (1927-1940), de José Régio e Gaspar Simões, os "Cadernos de Poesia", entre cujos responsáveis se contou Jorge de Sena, ou a "Távola Redonda", de David Mourão-Ferreira. Os organizadores da mostra fizeram questão de chegar literalmente ao presente e dedicaram um pequeno núcleo às revistas lançadas já no século XXI, como a "In Si(s)tu", editada por ocasião do Porto 2001, ou a "Oriente", da Fundação Oriente, dirigida por Alçada Baptista. A principal objecção que pode fazer-se a esta mostra, na qual se encontram alguns espécimes raríssimos -veja-se esse curioso "O Piolho Viajante", editado em Lisboa, em 1805, por João Rodrigues Neves -, é a escassez de informações sobre as revistas expostas, que por norma se resumem à data de edição, ao impressor, à periodicidade e ao responsável editorial. Uma lacuna que se espera venha a ser corrigida num já prometido futuro catálogo. E diga-se que, em alguns casos, sobretudo no que diz respeito às revistas mais antigas, a equipa do museu não disporá de muita bibliografia anterior em que possa apoiar-se. Mesmo a "Gazeta Literária", com o prestígio que lhe advém de ter sido a primeira revista literária portuguesa, só em 1963 inspirou um estudo sério, que ficou a dever-se ao italiano G. C. Rossi. Esforço que, até hoje, só teve continuação num ensaio publicado em 1980, no suplemento cultural de "O Comércio do Porto", por Alfredo Ribeiro dos Santos, médico e historiador do movimento da Renascença Portuguesa, que ultima neste momento a redacção de uma "História Literária do Porto".