"Hamlet" estreia-se hoje em Viseu
É em Viseu que Ricardo Pais, encenador e ex-director do Teatro Nacional S. João (TNSJ), do Porto, tem as suas "raízes". Apesar de não ter nascido na cidade, foi lá que viveu durante muitos anos - o pai e a mulher são viseenses -, tendo incrementado, durante os anos 80, a vida cultural. Quando o Teatro Viriato era um espaço moribundo, convertido num armazém de mercerarias, Pais encenou para o velho palco a peça "Apenas Críveis à Luz Eléctrica", de Aquilino Ribeiro, e convidou alunos de arquitectura da Faculdade do Porto para elaborarem projectos de restauro da sala. Algum tempo depois, a autarquia adquiriu o teatro e o arquitecto Sérgio Ramalho assinou o plano de recuperação. Em Abril de 1999, o Teatro Viriato abriu as portas, sob a direcção de Paulo Ribeiro. A cidade recuperava, assim, uma sala votada ao abandono e estava dado o primeiro passo para uma regular programação cultural.A julgar pelo número de bilhetes já vendidos - mais de um milhar - o regresso de Pais é largamente bem-vindo. Até porque o seu prestígio alia-se à estreia absoluta de uma das produções mais aguardadas do ano. Numa acção invulgar, o Teatro Virato acolhe, esta noite, a primeira apresentação de "Hamlet", de Shakespeare, sob encenação de Pais. A proposta foi resgatada depois do adiamento em 2000 e o encenador reuniu as condições necessárias para uma produção que congrega o Ensemble, o Viriato, o Auditório Nacional Carlos Alberto e os dois teatros nacionais, que vão também acolher o espectáculo. Paulo Ribeiro, director do Viriato, não esconde o seu regozijo perante o "desafio". A estreia desta mega-produção e a carreira prolongada do espectáculo - em cena até dia 14 - poderá assinalar uma "viragem" na programação do teatro. Tudo dependerá da auscultação do público: "Se este projecto funcionar, em termos de fidelização de público, vamos arriscar mais vezes neste tipo de produções", afirma."Contai-lhe como puderes/Que me fez ir a um fim destes.../...O resto é silêncio..." Adeus mundo de espantos. Vil, assassino, demente, fingidor. Hamlet precipita-se para a finitude, mas roga ainda a Horácio a purificação do seu nome. Uma redenção que imortalize os seus irreprimíveis sentimentos. Se alguma esperança sobrevive reside na recusa do esquecimento de tudo quanto se fez. Mais do que a dor provocada pela espada que lhe trespassa o corpo, é a suspeita de se perder no tempo que lhe corrói a ferida aberta. Para trás, o suicídio de Ofélia e um palco de mortos. Abandonada a crença na sua vingança, Hamlet parece aliviado pela dissolução das suas emoções.Serão acasos que orquestram a mutabilidade do protagonista?Plena de nexos subterrâneos, a obra (1600/1) opera um movimento centrípeto em torno desta figura tão ambígua e trágica. Evasiva em certos momentos, ilumina a personagem homónima nos seus solilóquios. E o público, acolhido nas suas convulsões interiores, desperta do torpor e dissolve-se nas palavras que ostentam a cirúrgica análise da condição humana. Emerge, então, um espelho de água. "Ser ou não ser", agir ou não agir. É sobre a consciência de nós mesmos que Hamlet reflecte, verbalizando os desejos e a memória. Aquilo que julgamos para sempre perdido quando tudo se silencia.Traduzido por António M. Feijó e sujeita a uma versão dramatúrgica feita com o encenador, "Hamlet" reproduz-se no Teatro Viriato numa interpretação apaixonada. Que releva uma "amplitude de leitura suficientemente grande", salienta Pais, e que recusa aparatos cenográficos - em cena aberta, o cenário ressuscita metáforas presentes na obra - para favorecer o texto. "Esta é a peça em que o teatro entra mais dentro de si próprio", defende, indo ao encontro daquilo que foi proclamado por autores como Goethe, Coleridge, T. S. Eliot ou Harold Bloom. Este último, aliás, sempre argumentou que "Hamlet" é uma peça "obcecada com a teatralidade". Já no segundo quartel do séc. XVII, Corneille haveria de enveredar pelo metateatro em "A Ilusão Cómica" (1635).Não são apenas os espelhos amovíveis que emanam uma conotação com o mundo do teatro - "a metáfora mais importante deste trabalho". Também a transversalidade épocal dos figurinos e a interpretação de um actor, João Reis, que se metamorfoseia em espíritos de verdade e enganos associam a peça a uma reflexão sobre o acto de representar.Segundo Pais, é a "hesitação" que define o protagonista, seguro, porém, de que a verdade "só se consegue através do teatro". Por isso denuncia o assassinato de seu pai com a encenação de "A Ratoeira", por um grupo de teatro ambulante. A reconstituição desvenda a verdade. E aqui são os pormenores que se tornam inexoráveis. Na representação que escava o interior de outra representação, bastam luzes sobre um instante e o terror desperta-se em Cláudio. "Toda a obra é sobre a sinceridade e o diferenciar das suas camadas", aponta o encenador sobre a peça à qual Eliot chamou "a 'Mona Lisa' da literatura". Ricardo Pais descortina uma questão pertinente: "Shakespeare estava efectivamente a escrever uma peça em que acreditava plenamente, ou estava, antes, a criar uma personagem autónoma e contraditória, ao limite irrepresentável?". A resposta só o autor a poderia dar, restando um mapa de especulações.Pode não ser uma contradição o universo demencial no qual o princípe da Dinamarca mergulha após a revelação feita pelo espectro do seu pai. Subitamente, transforma-se numa figura tomada pela loucura. Mas esse estado é apenas entrevisto. Nunca se chegam a entender os planos psicológicos que precedem os seus actos. E até ao final perduram a ambiguidade e a complexidade na sua sustentação. Restam suspeitas. A desconfiança de que as suas atitudes são as de um farsante, mas até esta figura permite imaginar que aquilo que é mais previsível é forjar situações, de forma a libertar-se do seu verdadeiro carácter. Hamlet cede a esta "loucura" e comporta-se de forma deliberada, sendo o consentimento a reacção de alguém demente, que, a todo o custo, tenta ocultar essa luta interior. Com um elenco reincidente em encenações de Pais, "Hamlet" será também apresentado no Porto e em Lisboa. Várias iniciativas desenrolam-se em paralelo: : o TNSJ prepara um projecto multimédia que dará acesso "ao magnético campo de forças, vozes e sinais do espectáculo"; haverá sessões de teatro radiofónico e foi já o concebido um argumento para a realização de um filme "feito a partir do teatro", com produção de Paulo Branco.