Gulbenkian mostra quadro de Modigliani que pertenceu a Amadeo e nunca foi exposto
Humidade quase destruiu a pintura que o artista terá oferecido
a Amadeo. Jorge de Brito comprou-a nos anos 70 à viúva através
de um amigo e, mais tarde, foi obrigado a escondê-la. Nas colecções públicas portuguesas só há um Modigliani. Por Lucinda Canelas
Chegaram a Paris no mesmo ano (1906) e ficaram amigos. Diz-se que o artista italiano chorou como um bebé quando recebeu a notícia da morte do português de Manhufe. Amedeo Modigliani e Amadeo de Souza-Cardoso partilharam anos de boémia, conversas de atelier e exposições, trocaram cartas, passearam pelas ruas e cafés de Montparnasse."Havia grande intimidade entre os dois artistas e a sua amizade está muito bem documentada", diz Helena de Freitas, comissária da exposição Amadeo de Souza-Cardoso. Diálogo de Vanguardas, que é hoje inaugurada na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, e que vai mostrar uma obra de Modigliani, artista que só está representado numa única colecção pública portuguesa (em Vila Nova de Gaia).
Este "testemunho muito especial da cumplicidade entre os dois Amadeos", uma das 250 obras expostas, é protagonista de uma história que envolve a fundação, a viúva de Amadeo e o banqueiro e coleccionador Jorge de Brito (1928-2006). Trata-se de uma cariátide (coluna em forma de mulher) masculina de Março de 1911 que Modigliani terá oferecido ao modernista português ou trocado por alguns dos seus desenhos, explica a comissária, "e que muito provavelmente nunca foi exposta".
A obra, que hoje pertence aos herdeiros de Jorge de Brito, fazia parte da colecção pessoal de Amadeo e foi vendida pela sua viúva, Lucie de Souza-Cardoso, a João Teixeira, arquitecto e amigo pessoal do banqueiro, no início dos anos 70.
"Comprei-o em 1971 ou 72 porque a viúva, que não queria largar nenhum quadro do marido, tinha pressa em vender e já havia uma galeria francesa interessada", conta João Teixeira, que conheceu Jorge de Brito nos anos 50 e que começou a representá-lo na compra de obras de arte no final da década seguinte. O banqueiro, dono de uma das maiores colecções de arte do país, tinha já incumbido o arquitecto de encontrar quem quisesse vender-lhe obras de Amadeo. Mas Lucie foi absolutamente clara quanto às obras do marido: "Disse logo que não vendia nada, nem mesmo com a promessa de que o Jorge lhe compraria os quadros e depois doaria parte a museus internacionais na Europa e nos Estados Unidos."
A compra do Modigliani foi proposta a João Teixeira por José Sommer Ribeiro (1924-2006), que à data trabalhava na Gulbenkian, depois de a fundação se ter recusado a comprá-lo.
Sommer Ribeiro sabia que Jorge de Brito estaria interessado em ficar com a obra, mas não conseguiu contactá-lo, porque ele estava no estrangeiro (na altura estava a fundar o Banco Intercontinental Português). "Tive de o comprar eu", diz João Teixeira, que em dois dias viajou para Paris, onde Lucie vivia desde a morte de Amadeo, e fechou o negócio. "Paguei qualquer coisa como mil contos, já não me lembro bem."
O negócio foi feito através de Paulo Ferreira, pintor e amigo da viúva durante décadas, sem que João Teixeira chegasse a visitá-la. "Não fui lá a casa, porque ela não gostava de receber pessoas estranhas", acrescenta, "mas o Paulo dizia muitas vezes que ela tinha quase tudo embrulhado em pilhas debaixo da cama ou dentro de armários."
No forro do telhado ou no jardim
Depois de regressar a Portugal com a obra dentro de uma mala de cartão, João Teixeira ficou com ela em casa durante um mês. "Tinha familiares que não queriam que a vendesse, mas eu tinha-a comprado a pensar na colecção do Jorge e senti que não devia ficar com ela. Ainda a tive pendurada na parede para ver o efeito."
Quando o arquitecto a mostrou ao empresário e banqueiro, Jorge de Brito passou-lhe imediatamente um cheque. "Ele tinha uma verdadeira paixão pela arte", diz, acrescentando que não chegou a ver a obra exposta na casa da família Brito em Cascais. "Estava guardado nas reservas da colecção."
Depois do 25 de Abril de 1974, Jorge de Brito é preso em Caxias durante 19 meses, sem culpa formada. Tenta pôr a sua colecção a salvo, enviando-a para o estrangeiro, mas parte das obras permanece na casa de Cascais, posteriormente selada por ordem do tribunal. "Nesse período conturbado, o Jorge ainda conseguiu mandar coisas para fora, mas muitas ficaram e foi preciso escondê-las." Há até quem diga que algumas das peças teriam sido enterradas no jardim. João Teixeira não confirma: "Isso do jardim não tenho conhecimento, mas sei que algumas saíram disfarçadas entre os materiais de construção [a casa estava em obras] e outras foram escondidas no sótão, no forro do telhado. Talvez o Modigliani fosse uma delas, já que ficou tão degradado com a humidade [ver caixa]." Além disso, explica, "quando os militares do CopCon [Comando Operacional do Continente, fundado em 1974] ocuparam a casa, houve muita coisa danificada".
Na exposição em que Amadeo aparece em diálogo com alguns dos artistas mais importantes do seu tempo, Modigliani está representado por uma pintura, uma escultura e três desenhos, um deles da Casa Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia, que, segundo o seu director, "é a única colecção pública" com uma obra do pintor italiano (o Museu do Chiado e a Gulbenkian não têm nenhuma).
Os herdeiros de Jorge de Brito - que na década de 80 vendeu à Gulbenkian centenas de obras para a colecção do Centro de Arte Moderna e doou pinturas e desenhos de Vieira da Silva, Almada Negreiros e Júlio Pomar - terão ainda na exposição quadros do casal Delaunay e de Amadeo.