Casos sérios do cinema português no 14º Curtas
A uma sessão do fim, já é possível concluir: é uma competição nacional revista
e melhorada,
a desta edição
Não há um ano em que as noites da competição nacional não sejam noites da má-língua em Vila do Conde, mas este ano não é um ano normal: a um dia do fim da competição nacional (a um dia do fim da competição, ponto) e com uma sessão inteira ainda por ver (a sessão de Margarida Leitão, Miguel Gomes, Daniel Barroca e Teresa Garcia, que passa hoje às 21h30), já é possível concluir que esta é uma das melhores presenças em palco de sempre do cinema português no Curtas Vila do Conde. A ser um exagero, é um exagero legítimo: anteontem não houve nada (outra vez: nada) de se deitar fora, ontem também não.É habitual as melhores notícias virem do documentário: e vieram (via A Minha Aldeia já não Mora Aqui, de Catarina Mourão, Entre Tempos, de Frederico Lobo, e Impending Doom, de Edgar Pêra), mas desta vez ex aequo com a ficção (Perímetro, de Miguel Seabra Lopes, e Rapace, de João Nicolau).
Numa edição em que o multipremiado História Trágica com Final Feliz, de Regina Pessoa, ficou de fora (é assumido: a organização não quer déjà vus), a animação foi mesmo o género menos empolgante em competição. Your Words, de Mónica Santos, é ainda um exercício - valeu Stuart, meticuloso tributo de Zepe (José Pedro Cavalheiro) ao universo gráfico do ilustrador e cartoonista Stuart de Carvalhais, mas talvez não mais do que isso. Apesar da genuína empatia com o registo de Stuart de Carvalhais - no uso da mancha, na "languidez" do traço, na reconstituição de uma Lisboa simultaneamente típica, de varinas e ardinas do Diário de Notícias, e bas-fond, de fadistas e vinho tinto -, a animação de Zepe não deixa de ser um filme de época.
Tal como, de resto, Impending Doom, Entre Tempos e A Minha Aldeia já não Mora Aqui - com a diferença de que os filmes de Edgar Pêra, Frederico Lobo e Catarina Mourão, respectivamente, possuem o valor acrescentado do registo. São filmes de época, mas desta época: a época do fim da guerra fria - do fim figurado: Impeding Doom monta em paralelo imagens periféricas do funeral de João Paulo II, uma cerimónia religiosa em que se intrometem símbolos políticos, e do funeral de Álvaro Cunhal, uma cerimónia política em que se intrometem símbolos religiosos -, do fim da Aldeia da Luz (A Minha Aldeia já não Mora Aqui é o diário de bordo desse corte epistemológico que foi a inauguração da Barragem do Alqueva) e do fim tipo doença prolongada da Feira Popular de Lisboa (a cidade-fantasma de Entre Tempos).
Impending Doom e A Minha Aldeia já não Mora Aqui são significativos também a outro nível: são gestos que consolidam dois métodos e dois modos peculiares de observação (duas cinematografias, portanto). O método disruptivo, sintético, aditivado de Edgar Pêra, e o método seríssimo, absolutamente ajustado ao objecto, de Catarina Mourão (mesmo num filme encomendado, com este que regista, com todo o vagar e toda a emoção, a extinção de uma paisagem e de uma etnografia).
Entre um e outro, houve dois casos sérios de ficção nacional: Perímetro, visita guiada de Miguel Seabra Lopes à existência de um guarda nocturno que nunca dorme, e Rapace, estreia do montador João Nicolau na realização. Coincidem no tamanho, divergem no resto: onde Perímetro é uma deambulação com voz off (um filme muito fotográfico, muito concentrado nos gestos técnicos da composição e da iluminação), Rapace é uma ficção tecnicamente convencional, mas com mises-en-scène lúdicas - e muito gráficas - à Serge Bozon e diálogos colocados, muito fora, à Wes Anderson.