António Gancho (1940-2005) O poeta desapareceu na noite
Autor com apenas dois livros publicados, Gancho viveu quase 40 anos em instituições psiquiátricas
António Gancho morreu durante o sono, de ataque cardíaco, na noite de passagem de ano, na Casa de Saúde do Telhal, próximo de Sintra, onde estava internado desde 1967. Morreu "com ar trocista, a rir-se", descreveu ao PÚBLICO António Lampreia, da Assírio & Alvim, editora que publicou os dois únicos livros do poeta, O Ar da Manhã (1995) e a novela erótica As Dioptrias de Elisa (1996). O funeral realizou-se ontem no cemitério de Benfica, em Lisboa. Natural de Évora, António Gancho, "um poeta esquecido", segundo Lampreia, tinha 65 anos e passou quase toda a sua vida em instituições psiquiátricas, resistindo a injecções de insulina e electrochoques.
Aos 20 anos, tentara enforcar-se desajeitadamente com o fio do telefone. "Fui ao telefone do meu pai, lá em casa, com uma faca cortei o fio e quis-me pendurar com ele ao pescoço", contou numa entrevista ao PÚBLICO, em 1993. "Aquilo não deu resultado nenhum, o meu pai bateu à porta do meu quarto, que estava fechado à chave, e eu tinha uma data de livros para chegar lá acima... No outro dia meteu-me no Júlio de Matos." Ali, foi declarado esquizofrénico, e pouco depois seguiu para o Hospital de Miguel Bombarda. Em Janeiro de 1967, foi internado na Casa de Saúde do Telhal, onde permaneceu até morrer.
Amigo de infância dos pintores Álvaro Lapa, Joaquim Bravo e António Palolo, seus conterrâneos de Évora (após a morte dos dois últimos, em 1990 e 2000, dizia ser um homem cada vez mais só), Gancho vai para Lisboa aos 16 anos com a família, onde a busca literária o leva até ao Café Gelo, no Rossio, hoje desaparecido, mas que então era o ponto de encontro do grupo surrealista. Esse convívio parece marcar a sua escrita, onde se denotam veios do lirismo e ironia surrealistas. É num desses cafés lisboetas de tertúlia que conhece o poeta Herberto Helder, a quem entrega, em 1973, um conjunto de 36 poemas dactilografados. Onze deles virão a integrar a antologia organizada por Herberto Helder, Edoi Lelia Doura, editada em 1985 pela Assírio & Alvim. É a primeira vez que a sua obra é publicada, mas Gancho escreveu desde cedo. O pintor Álvaro Lapa recordava em 1993 ao PÚBLICO que já durante a adolescência "era ele quem escrevia versos, mais nenhum de nós sabia fazer aquilo assim, com aquela espontaneidade".
Na Casa de Saúde do Telhal, Gancho sonha com a publicação dos seus livros inéditos - O Ar da Manhã, editado em 1995, reúne um conjunto de quatro livros, escritos entre 1967 e 1985 - e com o regresso, nunca concretizado, a Évora. No Telhal, escreve ocasionalmente poemas de temática religiosa, sob encomenda. "Dá-me para um maço de tabaco. Eu escrevo qualquer coisa. O autor deve ser digno de tudo, de toda a espécie de literatura", afirmava ao PÚBLICO em 1993.
É em O Ar da Manhã que escreve: "Quando desaparecer/ hei-de pedir à noite/ que me consuma com ela/ que me devaste a alma/ não quero mais/ quero desaparecer na noite/ e só de noite consumir-me". Assim foi.