Ana Vieira e a arte de esconder

Foto
A exposição de Ana Vieira termina em Março daniel rocha

É preciso olhar mais do que uma vez (e saber ouvir) para descobrir o que está nas obras de Ana Vieira - há frases e pessoas escondidas na exposição que ontem inaugurou no CAM, em Lisboa, ao mesmo tempo queNão confiem nos arquitectos, de Didier Faustino, e Casa Comum

Uma rapariga está com uma lupa na mão a tentar ler o que parece ser uma tela em branco. Atrás dela está uma equipa de filmagens. "Não podemos filmar assim porque a nossa imagem aparece reflectida na lupa", explica o encenador Jorge Silva Melo, que está aqui no papel de documentarista, a fazer um filme sobre Ana Vieira, a artista responsável pela tela aparentemente em branco.

Estamos no Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Gulbenkian, em Lisboa, na apresentação à imprensa da exposição Muros de abrigo, de Ana Vieira, com curadoria de Paulo Pires do Vale, que foi inaugurada ontem. E as palavras de Jorge Silva Melo (que irá apresentar o seu filme quando a exposição terminar, em Março) têm tudo a ver com o que se passa nesta exposição. A equipa de filmagens está ali, mas não quer ser vista, quer no final ter um filme no qual a sua presença é anulada - como se nunca ali tivesse estado.

A obra de Ana Vieira fala disso - do que vemos e do que não vemos, do que julgamos ver, do que está lá mas não conseguimos ver, do que existe mas no fundo não existe porque nós não o vemos. Como as palavras mínimas escritas nas pequenas telas que, afinal, não são completamente brancas. Ou como as imagens escondidas atrás de outras telas brancas e que só vemos através dos espelhos também eles escondidos. Ou ainda como as frases que só conseguimos ler com a ajuda de lanternas.

Quando começaram a preparar a exposição, Ana Vieira contou a Paulo Pires do Vale que uma das recordações mais fortes da sua infância era o momento em que chegava a casa, uma quinta na ilha de São Miguel, Açores, vinda da escola, e em que ia buscar um molho de chaves para abrir as portas dos vários muros de abrigo que protegiam a vinha da maresia. "Absorvi esse espaço, a ambiguidade de ser simultaneamente aberto e fechado, e ainda o facto de haver passagens, de implicar tempo, cadências e percursos", escreve num texto. "Não queremos explicar a obra a partir desta história", sublinha o curador. "Mas esta é uma peça que se acrescenta a todas as outras", num percurso "fundamental no contexto não apenas português mas internacional". Muros que implicam sempre outro lado, que escondem algo. "O reverso do visível", escreve Pires do Vale. "E assim fantasma já presente."

No meio da exposição, uma casa feita de tecido e com os móveis pintados. No centro uma mesa posta, sem ninguém. Mas a peça tem som: ouvimos os ruídos de um grupo de pessoas a comer, os sons dos talheres, as conversas. Noutra zona há uma pequena abertura na parede. Espreitamos e vemos um casal a dançar - mas não o vemos directamente e sim pelo seu reflexo num espelho.

A casa como tema

Muros de abrigo é uma das três exposições que ontem foram inauguradas no CAM. Outra é Casa Comum, coordenada por Leonor Nazaré, e reúne obras da colecção em torno do tema da casa. Começamos com uma caixa vazia de madeira e vidro, de António Areal, com a legenda: "Paisagem: no primeiro plano uma casa numa colina. Ao fundo, no lado direito, chove copiosamente". E deste exercício de imaginação partimos para uma série de obras que evocam a casa, de um vídeo de Filipa César com montras de lojas de mobiliário, à Casa do Esquecimento de Pedro Cabrita Reis, passando pela intimidade de um quarto pintado por Manuel Amado, e pela casa feita de bocados de madeira, cartão e metal a que Julião Sarmento chamou Amazónia, depois de termos atravessado ruas e cidades de Nadir Afonso, Carlos Botelho ou João Abel Manta.

A terceira exposição é do artista e arquitecto Didier Faustino e chama-se, provocatoriamente, Não confiem nos arquitectos. Isabel Carlos, directora do CAM, convidou-o a conceber projectos para aquele espaço. Ele gostou do desafio - "acho esta arquitectura inspiradora, gosto de brincar com espaços difíceis" - desenhou no chão um jogo da macaca sem princípio nem fim, e criou um balouço onde podemos andar e quase tocar um ecrã, mas quando nos aproximamos muito tornamo-nos uma sombra sem identidade.

Sugerir correcção