A nossa mitologia

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Após duas décadas de antecipação crescente, dois anos de pré-produção, e dois anos de pós-produção, com escassos 65 dias de filmagens tradicionais e perto de dois mil planos digitalmente alterados, "A Guerra das Estrelas, Episódio 1 - The Phantom Menace" é ao mesmo tempo inovador e histórico. E Lucas parece estar apenas no início. Excerto de uma entrevista à revista Wired.

Na fila para a bilheteira, dizia um espectador americano, visto na televisão: "Os gregos tiveram a Odisseia, os romanos a Eneida, os celtas o Graal (...), nós temos A Guerra das Estrelas ".Com este horizonte de expectativas, é natural que os ânimos na Lucasfilm, incluindo os do fleumático proprietário, que os ânimos na Fox e nos media estejam hoje ao rubro. Os críticos instituídos não gostam, mas eles, na sua diversidade de opiniões, não são o "alvo" - e os produtores recusaram a ida a Cannes, com receio de ser aposto o rótulo de "art film", longe dos tempos em que o memorável festival de 1982 terminava em delírio com E.T. O "alvo" são os que cresceram com A Guerra das Estrelas e a grande questão agora é outra: se aquela operou em 1977 um marco na história do cinema, pela recuperação de uma mitologia que passou a ser tida como nova, pela incorporação tecnológica e pela comercialização massiva dos derivados, será que os que vieram depois, "grosso modo" a faixa "13-25 anos" que determina o sucesso comercial de um filme, esse público já moldado pelos videofilmes, videojogos e pela Internet ainda reconhecerá como seu o novo episódio da saga?O sucesso inesperado de "American Graffiti" e o apoio de um Coppola que então estava em posição central na indústria, permitiram o início das aventuras. Ninguém levou muito a sério aquele misto de brincadeira e excentricidade. Diz a lenda, impressa no livro semi-oficial de Dale Pollock Sky Walking - The life and films of George Lucas, que ele estava a jantar num restaurante com amigos quando repararam numa longa fila que dobrava a esquina: era para ir ver A Guerra das Estrelas. Depois veio a megalomania: fazer um novo serial (um "filme" com diversos episódios, como os velhos "31 partes") com três trilogias, a central, e assim o primeiro episódio a ser feito passava a número quatro, uma "prequel" e uma "sequel", uma e outra com três filmes, tudo para estar pronto nos alvores do novo milénio, em 2001, também em homenagem à "visão" de Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick. O resto é mais ou menos conhecido: Lucas não recebeu o Óscar, só tendo ido à cerimónia de entrega porque a sua então mulher, Marcia, também estava nomeada como montadora, fechou-se no seu rancho de Marin County, do outro lado da bacia de São Francisco, construiu um império (The Empire Strikes Gold titularia a Time ou a Newsweek uns anos depois), controlando à distância, entregou a outros o set dos episódios seguintes, metido noutras aventuras, desinteressou-se. Até que...Primeiro acrescentou novos efeitos especiais, depois confiou a si próprio a tarefa de realizar aquele que, retomando o espírito inicial, é suposto ser o episódio um, o que hoje estreia. O criador voltou ao local do crime.A Portugal, o número um da série chegou no Natal. Só o vi passado umas semanas e fiquei deslumbrado com aquela "feérie cibernética". Tive relativas decepções com O Império Contra-Ataca, apesar da beleza plástica da cidade das nuvens, e com O Regresso de Jedi, onde as vedetas já eram bonecos que podiam ser tradicionais. Nenhuma revisão dos filmes, e foram muitas, me alterou esta percepção. Ainda faço parte da "seita" e naturalmente aguardo com ansiedade a hipótese de ver este episódio novo e os que são supostos seguir-se.

Como se fosse possível guardar uma virginal ignorância, tenho tentado abster-me de ser sobrecarregado com informação prévia, o que se mostra debalde. Deixei escapar algo da expectativa e por isso aqui estou a responder à solicitação do PÚBLICO. Pelo meio passou um programa de tecnologia militar dos anos Reagan, do qual, com alguma inquietação, voltei a ouvir falar há uns dias. Enquanto vogamos na galáxia de ficções tornadas também nossas, a outra Guerra das Estrelas não foi desactivada, nem mesmo depois do fim do "império do mal", a União Soviética. Esperemos que continue só em estado virtual. Entretanto..."Há muito, muito tempo, numa galáxia distante..." - esse apelo, como a ele resistiremos, se é que somos supostos resistir? Para uma geração, a que chegou à idade crítica com o triunfo dos "movie brats", de Coppola e de O Padrinho, de Spielberg e Tubarão, de Lucas e de A Guerra das Estrelas, e na qual alguns mantiveram uma estrita fidelidade e outros, nos quais me incluo, foram acumulando decepções (mudaram eles ou mudámos nós ou, dito de outro modo, mudei eu?), a hora também é, não diria de revival, mas de alguma revisão do tempo, dos gostos, do modo de ver cinema, não na televisão ou no computador, mas na magia da sala escura, imaginando alguém a dizer "silêncio, luzes, acção" e o projector a rodar, as imagens a surgir no écran, o som a ser THX, método inventado nos laboratórios da Lucasfilm, dessa Industrial Light & Magic de George Lucas cujo nome é todo um programa. Queiram compreender, por favor, que, mesmo não querendo, já estou dividido entre um arremedo de entusiasmo e o fantasma da decepção. O espectador na fila tinha as suas razões: espero bem que não seja a única, mas aquela também é a "nossa mitologia". Como diz algures Yoda: "Skywalker, Skywalker. And why do you come to walk my sky? All your life have you looked away... to the horizon, to the sky, to the future"

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