100 anos do nascimento Agostinho da Silva, o filósofo que foi uma estrela pop
Dizia que o homem "nasce para criar, para ser o poeta à solta" e que a cultura "começa por todas as pessoas comerem o que devem comer"
Há uma ideia repetida por Agostinho da Silva que podia sintetizar o pensamento do filósofo que amanhã faria 100 anos: "Não sou do ortodoxo nem do heterodoxo, cada um deles só exprime metade da vida. Sou do paradoxo, que a contém no total."É, de resto, uma frase típica do homem que muitas vezes questionava o interlocutor sobre se era uma coisa ou o seu inverso, e desafiava quem o ouvisse a "pensar ao contrário" dele.
Tem dezenas de ideias em forma de aforismo que facilmente entram no ouvido, algumas delas transmitidas no programa Conversas Vadias que o tornou uma quase estrela pop e do qual se retirou por querer deixar de estar na moda. Ideias sobre o homem, que "nasce para criar, para ser o poeta à solta".
Sobre a criação: "Não tenho a certeza de ser o autor daquilo que escrevi. Não tenho a certeza de que as ideias de alguém nasçam da cabeça desse alguém."
Sobre as relações amorosas: "O amor entre duas pessoas é o que faz com que qualquer uma delas seja duas ao mesmo tempo. Não é ser o outro, como tantas vezes no casamento, porque nesse caso haveria uma cedência no que se é."
Sobre a existência de Deus: "Um Deus provado deixaria de ser Deus pois excederia em nada a nossa capacidade de lógica." E a crença no Espírito Santo: "Acreditar no Espírito Santo é acreditar no divino sem personalização."
Sobre o emprego, que julgava que um dia ia desaparecer para dar lugar a um mundo "gratuito para toda a gente", o que lhe valeu a designação de utópico. Sobre os portugueses e Fernando Pessoa, que vem "dizer ao português que é plural e que é na sua pluralidade que ele tem de se afirmar". Sobre o poder, que "não passa de uma vaca: devemos dar-lhe palmadas no rabo e tentar tirar-lhe o leite, é para isso que ele serve".
Sobre a política: "Quanta inteligência da direita é apenas estupidez da esquerda." Sobre a cultura, que "começa por todas as pessoas comerem o que devem comer" e só depois chega aos interesses culturais. E por aí adiante...
Professor, filósofo, ensaísta, tradutor (sabia 15 línguas), poeta e tantas outras coisas, morreu em 1994, poucos dias antes de fazer 88 anos. Interessado pelas relações entre a razão e a mística, a filosofia da História, a história portuguesa, a existência de Deus, a política ou a pedagogia, recusou muitas vezes as designações de "filósofo" e "filosófico", valorizando a cultura popular.
Nasceu no Porto mas cresceu em Barca d"Alva, terra de fronteira com Espanha. Cursou Filologia Clássica na Universidade do Porto, doutorou-se com uma tese sobre Montaigne na Universidade Sorbonne de Paris (onde conheceu António Sérgio, que iria marcar o seu pensamento) e regressou ao Porto para leccionar na Faculdade de Letras. Depois da extinção desta faculdade foi colocado no Liceu de Aveiro, de onde foi demitido por se recusar a assinar um documento, obrigatório, garantindo que não pertencia nem iria pertencer a nenhuma sociedade secreta. Colaborador da Seara Nova, revista onde escreviam os intelectuais críticos do regime de Salazar, lançou depois os Cadernos de Iniciação Cultural, onde se editava literatura mundial mas também biografias e temas diversificados como o budismo, história do linho, literatura grega ou O Cristianismo (1942), censurado, talvez porque ali se fala de um Deus mais real, "que não exige de nós nenhum culto".
Desiludido com Portugal, retirou-se para o Brasil em 1944. O homem que recuperou a ideia do V Império iniciou uma série de projectos no Brasil, que dizia ser "modelo do futuro quanto à mistura de populações" por ter "uma cultura que, sendo geral, respeita a cultura de cada um".
Com o golpe militar no Brasil, Agostinho da Silva, defensor de um passaporte comum a todos os países de língua portuguesa, regressou a Portugal 25 anos após a saída, com a autorização de Marcelo Caetano, dedicando-se sobretudo à escrita. Apologista da Península Ibérica, disse, depois da queda das ditaduras em Portugal e Espanha: "Tenho a ideia de que ela está em vésperas de uma nova expansão muito mais interessante do que a anterior, porque será uma expansão de espírito, de afecto."
Chamavam-lhe franciscano, para quem, como disseram, estava primeiro a liberdade e depois a fraternidade, desprendido dos bens materiais - nem sequer cobrava os direitos de autor das suas obras como As Aproximações, Reflexão, Cartas a um Jovem Filósofo, Um Fernando Pessoa, Conversação com Diotima, Pensamento à Solta. Agostinho da Silva não tinha bilhete de identidade, nem número de contribuinte.
Numa das Conversas Vadias alguém lhe perguntou quais eram as suas principais qualidades. "As pessoas têm características. Quando não gostamos delas dizemos que são defeitos. Quando gostamos, chamamos qualidades."