Parece mentira

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Miguel Madeira

O Lusitânia Expresso partiu com 120 pessoas a bordo - jornalistas, activistas, estudantes - e muitas flores para serem depositadas numa campa de cemitério de Díli. Tinham passado quatro meses do massacre de Santa Cruz. A ditadura de Jacarta fez uma demonstração de força e o pequeno navio voltou para trás. Duas décadas depois, alguns dos que participaram na missão Paz em Timor cumpriram o que ficou então por fazer. Em 1992, Rui Cardoso Martins esteve no Lusitânia em reportagem para o PÚBLICO. Agora voltou ao local onde não chegou a estar

Um pseudo-acontecimento, um gesto mediático, só isso. Mas não é costume acontecer tanta coisa num pseudo-acontecimento, pois não?

- É preciso o mundo estar muito louco para ser preciso fazer uma coisa destas, disse-me alguém no convés do Lusitânia Expresso, ao sairmos para o mar de Timor. Não registei o nome dessa voz, não me lembro da cara, mas foi o que vi e ouvi em 1992, há 20 anos. Era como a voz colectiva do navio, alguém colado à amurada de um ferry boat caquético que navegara semanas e semanas para chegar à Austrália, atrasado por tempestades no Golfo Pérsico, pela temperatura excessiva do Índico, a tossir os motores desde Lisboa, carregado de dívidas. Em escassas horas, no porto de Darwin, metera a bordo 120 estudantes, activistas de 23 países, jornalistas, mais um ex-Presidente da República - general Ramalho Eanes - e o navio afastava-se do cais para ir depositar uma coroa de flores no cemitério de Santa Cruz. Uma tempestade eléctrica projectava-se no telão do céu, faíscas enormes nos limites do mar, e os timorenses exilados na Austrália corriam até ao último centímetro da doca, fazendo-nos adeus com a cara molhada. À velocidade de dez nós, pesado como o nervoso dos passageiros, que se derretiam pelo chão e nos sofás, num cansaço épico, a recuperarem os músculos, mas concentrado como os profissionais que afinavam os rádios de transmissão, o Lusitânia poderia chegar a Díli quatro meses exactos depois do massacre.

Logo nessa tarde passa um avião de reconhecimento, rasa o mastro mostrando a bandeira branca e vermelha da Indonésia. De madrugada surgem pontinhos vermelhos no radar. Pela manhã, temos uma escolta da marinha militar, lado a lado. A 11 de Março, o Lusitânia é barrado por fragatas de guerra, helicópteros, lanchas de assalto.

O capitão Luís Santos, ironicamente, dirá que se sentiu honrado com a importância que lhe davam. "Três fragatas!" O Lusitânia, de facto, era um velho traste marítimo, feito para as águas frias do Norte da Europa, nem conseguia refrigerar o motor numa sopa tropical a 29 graus centígrados.

À vista desarmada, vemos agora as peças de artilharia, em posição de tiro, e comandos de colete, que parecem armados, à espera junto dos botes erguidos sobre a água. Os helicópteros melgam pelo ar. Finalmente, duas das grandes fragatas cruzam-se de proa, de frente para o Lusitânia, cortando o caminho. Pela rádio, um homem com voz de vilão de filme, numa estridência de balão de banda desenhada, em inglês nasal, começa a berrar ordens. Uma cena tipo Tintin, o repórter, admito o preconceito mas ainda trago uma fala nos ouvidos:

- This is Papa Kilo Alpha India, indonesian warship!

Estou a um metro do capitão, é o homem que manda na nave e pega no telefone. Mas o altifalante mantém-se aberto, ouvimos tudo. Rui Marques, o director da missão, marcha na ponte de comando como um tigre apertado na jaula. Traz ao pescoço um "tais", um pano tradicional timorense, neste calor. Ramalho Eanes, no canto, mastiga em seco, acabara de vestir as calças, com humor - "não me apanharão em calções..." -, para mais tarde desabafar, enervado pelas circunstâncias, que não foi feito para missões de paz.

O militar da fragata ordena, num tom de ataque ou assalto, o regresso imediato do Lusitânia ao sítio de onde viera. Está a entrar em águas territoriais indonésias, repete várias vezes, esta rota é proibida. O capitão simula uma avaria no motor, diz que é do calor, os indonésios gritam instruções para virar a bombordo. Impasse. Mais tarde, o barco perde o sinal rádio, a própria navegabilidade e cai, por minutos, numa perigosa deriva, baralha-se no rumo, até pode ir direito às fragatas por engano, as comunicações via satélite desaparecem e em Lisboa roem-se as unhas.

As montanhas de Timor esperam ao longe, azuis e belas. Estarão a ver-nos de lá? Quantas crianças, jovens, adultos, velhos nos esperam? Falam muito ou estão em silêncio? Que iriam fazer, se entrássemos no porto de Díli, os guerrilheiros, os estudantes, as pessoas da rua? Os jovens controlavam-se ou tentariam subir ao navio e fugir dali? Que crise humanitária nos esperaria, nesse caso? Que resposta dariam os indonésios (três mil militares, armados de metralhadora, faziam cordão na marginal da cidade para afastar as pessoas, soube agora). Quem está disposto a tudo, aqui no convés e ali em Timor, nas aldeias, na selva? Quem não se importa de morrer e quem acha isso um disparate?

No mar escuro, liso como um espelho, saltam peixes-voadores. Só levamos flores contra canhões.

Horas depois, rezaram-se as bem-aventuranças e as flores deitaram-se ao mar. Chorou-se muito, de frustração e revolta. Donaciano Gomes, então com 22 anos, o único timorense a bordo, ligado à resistência interna, com ordens directas de Xanana Gusmão, fugitivo desde o protesto independentista na missa em Díli do Papa João Paulo II, em 1989, ditou nesse dia para este jornal, através do repórter a bordo, por rádio de ondas curtas, a tristeza por não entrar na sua cidade. E como tentava dominar o "rancor" pelos indonésios. Não falou no risco da sua vida, se fosse apanhado pelo inimigo.

Rui Marques, o autor da ideia, pilar da missão, director da revista rum Estudante, mandou o Lusitânia para trás porque preferiu mostrar ao mundo, em tempo útil - ou a história podia morrer, como se diz - as imagens feitas pelos jornalistas da CNN do bloqueio naval (ainda em águas internacionais, contra as leis da navegação) de um território anexado à força e contra sucessivas deliberações da ONU. Havia a bordo jornalistas e activistas norte-americanos, australianos, canadianos, eles iriam contar o que se passou e a tempo de ser notícia nos seus países, aliados do ocupante (todos, aliás, foram aconselhados, ou mesmo ameaçados, por embaixadas e departamentos de Estado para não embarcarem). Nessa época não havia Internet, e o Governo da Austrália, preso a interesses petrolíferos e estratégicos, boicotara o aluguer de satélites televisivos. E a Indonésia, confirmou-se depois, começava a difundir internacionalmente as imagens de um navio solitário que dava a volta para trás, por livre iniciativa. Um barco de radicais, subversivos, colonialistas, talvez terroristas suicidas, afinal desistia cobardemente da sua "provocação". Sem nunca se verem, no ecrã, os navios de guerra em cima dele. Rui Marques também só agora me disse (alguns cabelos brancos e abrem-se segredos...) que o ferry tinha um casco único, fino, e nenhum compartimento estanque. Um toque num couraçado, um rombo qualquer e afundava em dois minutos, três minutos no máximo, informações náuticas úteis do armador... Um helicóptero fretado pela imprensa veio de Darwin até meio caminho, ergueu o pacote das cassetes de vídeo com um cabo, em pleno voo, e levou as imagens depois difundidas pelas televisões.

Os balanços só se devem fazer na hora certa, o tempo é sábio. Não escrevas Fim antes de acabar a história. A paciência é, além da coragem (e da gratidão), uma das características humanas desta metade de ilha no extremo leste da Ásia, a 14 mil quilómetros de Portugal. O colonizador que lutou pela independência da ex-colónia. Tarde e a más horas, mas lutou.

Também a grinalda da Missão Paz em Timor pousou de vez, há dias, na campa de Sebastião Gomes. O estudante assassinado na ressaca do cancelamento da visita de uma delegação parlamentar portuguesa que poderia, esperava a Indonésia, caucionar a anexação de Timor-Timur, "a 27.ª Província da Indonésia". Sebastião estava abrigado na igreja de Motael e a sua morte desencadeou uma reacção, com o apoio de Xanana Gusmão: dias depois, a 12 de Novembro, um protesto organizado com centenas de jovens dos vários sectores políticos. Os cartazes mostravam uma voz comum, havia bandeiras da Fretilin, da UDT, viva Xanana, Pátria ou Morte, Viva Timor-Leste independente.

As flores prometidas chegaram agora a um país que é independente há mais de dez anos. Em 1992, esta possibilidade caía fora da lógica para quase toda a gente, a começar pelos portugueses que atacaram ou ridicularizaram o Lusitânia Expresso, no regresso a casa. Os que não perceberam o que se passou e o que a missão queria (que se falasse de Timor, que se mostrasse a força dos invasores, eis a substância de um "pseudo-acontecimento"). Os críticos que pediam outros mártires, como se não bastassem os antigos, os presentes e os futuros.

Flores no cemitério onde morreram centenas de estudantes a tiro e a baioneta (os números vão de cerca de 200 a quase 400, com os desaparecimentos dos dias seguintes) e levados em camiões, como bichos de matadouro, e exterminados no hospital militar com pastilhas de formoldeído, desinfectante e veneno para insectos que os feridos foram obrigados a engolir, e pedregulhos na cabeça e injecções e catanadas e crianças vivas enfiadas no congelador da morgue, e enterradas em valas comuns ainda hoje secretas. Tudo o que podemos imaginar de mais horrível.

Era uma operação para "limpar tudo", admitiram os militares, foi o que disse há dias em público Mário Carrascalão, o governador da altura. Mas, no fundo, só mais um massacre entre outros, comum na história do genocídio de um povo - mais de 200 mil mortos - que lutava com uma coragem individual e colectiva, uma dignidade quase inexplicáveis, desde a invasão de 1975.

O crime foi, desta vez, testemunhado por vários repórteres estrangeiros, e filmado pelo britânico Max Stahl (um herói, como sabem, já conto mais), e o mundo ocidental e democrático, aliado da potência indonésia, viu a morte em marcha em Timor-Leste. No dia do massacre desapareceram também muitos filhos de timorenses integracionistas, netos dos que apoiaram a invasão, foram todos varridos, o primeiro tiro não foi aviso, mas ordem de disparo sobre rapazes e raparigas com a saia da escola, primeiro vieram as rajadas de metralhadora dos soldados que esperavam atrás do muro em frente (o do cemitério indonésio), e em camiões. O portão de Santa Cruz entupiu de mortos, feridos, esmagados. Depois devagar, de forma metódica, os soldados inspeccionavam os corpos, golpeando os feridos, chamando o homem atrás da câmara com o braço, anda cá tu!, apontado-lhe a espingarda entre as campas coloridas e desordenadas. Uma matança no coração de Díli (e poucos dias depois na televisão, em nossa casa). Como ruído de fundo, o sopro das sirenes e uma Ave Maria rezada em português, numa capelinha, por jovens escorregando no próprio sangue.

Foi o 12 de Novembro de 1991. Assim se começou a mover a louca paralisia do mundo.

Custa fazer o resumo simples de um capítulo grande que se vai encerrar. Só pisei Timor 20 anos depois de o ver, ao longe, de um navio que voltou para trás. Custou-me muito ir para trás. Agora, Novembro de 2012, volto mas em frente.

E ao primeiro bafo húmido na pista do aeroporto sou tomado - e isso continua, como se vê - por uma inundação de adjectivos, hipérboles, verbos épicos, advérbios que devia limpar, frases superlativas, metáforas poéticas. Não é costume, acho eu. Se calhar é saudade do que nunca se viu. Mas também o efeito normal que Timor tem nas pessoas: tenta, tenta, mas nunca serás imparcial, distante, neutro no caso timorense. É demasiado grande a história curta do pequeno país. Diante de um nível de violação dos direitos humanos tão óbvio, tem de se escolher o lado.

Em Portugal, creio, não há termo de comparação para explicar os timorenses: ninguém experimentou os limites de tortura física, morte, sacrifício de familiares, solidão e, ao mesmo tempo, aprendizagem da evolução do mundo a partir de buracos no meio do mato. O domínio e defesa da língua portuguesa nas cartas e escritos de combate da guerrilha, a utilização do tétum como aglutinador linguístico do povo, a paciência no extermínio (nas operações "cerco de pernas" os indonésios avançavam com sucessivas paredes de escudos humanos, e os guerrilheiros ou se entregavam para morrer, como muitos fizeram, ou matavam os próprios irmãos). Depois, a forma como se colocou o inimigo a alimentar a guerrilha com as suas próprias armas, roubadas em assaltos-relâmpago. A maneira como os camponeses de Timor ajudaram a guerrilha, alimentando-a, dando-lhe refúgio, arriscando a vida. O papel da igreja católica na luta, com padres e bispos que deram refúgio e medicamentos aos perseguidos, que transportaram telefones-satélite para a guerrilha, escondidos em malas de missais... A inteligência da organização clandestina, com a certeza, desde o início, de que só com representantes fora do país, a "frente externa" de José Ramos-Horta, Mari Alkatiri, João Carrascalão, etc., a luta interna com o seu herói improvável, um predestinado à força, o fotógrafo Xanana Gusmão (e os outros comandantes) podia vencer. A noção de que a luta teria de descer às cidades, com a acção dos estudantes e dos funcionários, mesmo aqueles que, durante o dia, trabalhavam para o invasor. E que tudo isso teria de ser mostrado ao mundo através da imprensa, com entrevistas, fotografias de torturas compradas a soldados. O maior número de imagens inequívocas dos crimes, como foi Santa Cruz.

Por último, a duplicidade, calculismo, crueldade na vingança e, ao mesmo tempo, generosa espontaneidade que fazem a alma timorense. Não tentarei explicar, não a percebo. É, por assim dizer, uma coisa deles (com um bocadinho de português). Mas o historiador José Mattoso deverá ter acertado na palavra-chave para a libertação de Timor: a dignidade.

Para o bem e para o mal, pisando o país, vejo-me ligado a frutas e cheiros, mosquitos, montanhas, acácias gigantescas (a madre-cacau que protege as plantas do café), mares de coral, crocodilos e precipícios, cavernas, o esconderijo minúsculo do guerrilheiro Konis Santana, morto a escrever as últimas instruções, numa espécie de toca de coelho, em Mertutu, Ermera, atrás de uma escola. Casas ardidas, casas reconstruídas, sinais recentes de confiança. A riqueza e a miséria, a electrificação quase completa do país, uma surpreendente cobertura de telemóvel.

Mas logo regressam as coisas que se dizem sobre corrupção nos dinheiros do petróleo, nos carros grandes que passam, nas estradas esburacadas feitas para estragar com a primeira chuva e receber mais dinheiro, os contratos milionários assinados sempre com os indonésios, negócios em Bali, interesses australianos, a impotente influência portuguesa, e que o melhor que aconteceu à Indonésia foi desistir militarmente de Timor para conquistar a economia do país. E as crianças vestidas com a farda escolar escalando subnutridas a estrada da montanha, a caminho da escola, todas dizem "boa tardi". Todas as crianças de Timor andam na escola, é verdade, mas não têm livros nas mãos nem professores preparados. Sai uma escrita molhada como as chuvadas do princípio da tarde, viscosa como as cobras verdes e os traidores, as catanas das milícias assassinas, ao serviço do exército, que não aceitaram o referendo de 1999 e tentaram a guerra civil outra vez, quente como o sangue derramado dos heróis, pátria ou morte, resistir é vencer!

Está bem... De qualquer modo, procura falar menos no ar. Conta onde estiveste, onde estás. Lembra-te do que disse, numa sala cheia, aquele sobrevivente do massacre de Santa Cruz:

- Quando soubemos que vinha aí o navio Lusitânia Expresso, percebemos que não estávamos sozinhos. Deu-nos força. E estávamos prontos a morrer outra vez. Obrigado pelo que fizeram por nós.

Quantas vezes ouvimos isto, ou parecido, nestes dias? Dito pelo homem da rua, anunciado por José Ramos-Horta, prémio Nobel da Paz: a liberdade nunca seria alcançada sem a solidariedade internacional, como foi o Lusitânia Expresso. "Obrigado pelo que fizeram por Timor, pela vossa coragem."

Mas quem somos nós para discutir coragem com timorenses?

Agradecimento repetido na audiência com o Presidente da República, Taur Matan Ruak: general, brilhante estratega, herdeiro de Konis Santana, temido na selva pelos indonésios, é aquele a quem todos chamam impoluto. De quem se espera que evite que Timor se perca na corrupção, ou entre em processo de anarquia, quando saírem as últimas forças internacionais, no fim do ano. Aquele que nos diz que tudo fará para "distribuir a riqueza correctamente, educar e tratar dos pobres", saber usar os milhares de milhões de dólares do fundo de garantia do petróleo para proteger as gerações futuras. É o maior desafio, "a parte mais difícil, porque Timor teve tanta sorte em obter a libertação". Matan Ruak olhava o mar em Março de 1992. A sua cara é uma mistura maravilhosa: um sorriso infantil que, num segundo, passará a determinação feroz. É a sua fama. Pertence a uma classe política especial, um coração formado na guerra e no sofrimento. Tem uma espécie de coragem lamechas. Eis o Presidente da República Democrática de Timor-Leste:

- Às vezes, ponho-me a pensar no que vocês fizeram e ponho-me a chorar. Como é que eles conseguiram chegar até aqui? Nessa altura estava em Manatuto [costa norte, a leste de Díli], a ver se chegavam. Quando soube que voltavam para trás, foram as minhas lágrimas maiores.

Roque Rodrigues, que controla as relações internacionais na presidência, com o seu ar de sábio sorridente, falará para resumir o que se passou antes, durante e depois do Lusitânia Expresso, a rapidez com que o país chegou ao que queria. A visita do Papa, o 12 de Novembro, o navio da paz, a ocupação da embaixada americana em Jacarta por estudantes timorenses, em 1994, a pressão do Presidente Bill Clinton, a diplomacia portuguesa, a queda de Suharto, o referendo esmagador a favor da independência, a duríssima decisão de não responder às milícias que matavam pessoas na rua, e incendiaram Díli, esperando a intervenção internacional. Finalmente, a independência. Roque Rodrigues usa uma expressão leve mas exacta. Carrega várias interrogações sobre Timor, se pensarmos bem:

- Como se costuma dizer, até parece mentira!

Estou às oito da manhã na Igreja de Motael, a 12 de Novembro de 2012. Na missa ao ar livre, cheia de representantes da sociedade timorense. O vigário-geral faz uma arenga apaixonada em tétum sobre, pelo que entendo, as lições do massacre, mas que deriva para os perigos da sociedade moderna. As únicas palavras que entendo: "Aborto, prostituição, droga, amor livre, homossexualismo, poligamia..." Parece que a lista de todos os vícios se diz num português católico, em Timor.

A meu lado está a delegação dos outros "ex-tripulantes do Lusitânia", como nos chamam, num simpático erro técnico, os anfitriões, organizadores das Comemorações dos 20 anos da Missão Paz em Timor e do 12 de Novembro.

Rui Marques e a mulher, Francisca Teixeira, as filhas Marta e Madalena. Viveram cá dois anos, em 2001, na reconstrução de Díli, fizeram o Centro Juvenil Padre António Vieira, um exemplar complexo de ocupação de tempos livres dos jovens, com acções diárias de formação. Tem uma pousada de juventude anexa e é lá que durmo, protegido por um mosquiteiro.

A meu lado, João van Zeller, organizador da Missão, tradutor, jornalista da Fórum Estudante, e Fernando Guerra, professor de Medicina Dentária (e presidente da Associação Académica de Coimbra em 1992, um dos mais entusiastas animadores da angariação de fundos nas ruas). Margarida Neto, médica psiquiatra que acompanhava o estado psicológico, a ansiedade dos estudantes na missão. Nesse ano deixou, em casa, um filho de um ano, o mesmo que, 20 anos depois, se prepara para ser voluntário em Timor, conta a psiquiatra, com orgulho. Também estão Nuno Ribeiro da Silva, o então secretário de Estado da Juventude que, nos bastidores, teve o papel fundamental de desbloquear verbas secretas (o chamado "grupo de empresários do Norte"...) para pagar os bilhetes de avião para a Austrália dos 120 estudantes portugueses e estrangeiros. A missão esteve para fracassar à última hora, por falta de dinheiro.

A comitiva é um "apanhado" de representantes de todos os grupos que estiveram no Lusitânia. Veio um norte-americano, Lauren Ryder, hoje professor universitário, fluente em bahasa indonésio. E a documentarista canadiana Geneviève Appleton, que fez um filme há 20 anos que alimentou, em parte, o documentário recente, para a RTP 1, do realizador Francisco Manso sobre os bastidores do Lusitânia Expresso em Portugal e do seu impacto em Timor, apresentado também na TV de Timor. Veio ainda a jornalista Dewi Anggraeni, então ao serviço da revista indonésia Tempo, independente o melhor que podia da ditadura de Suharto, que embarcou corajosamente no Lusitânia e fez três capas sobre a missão. Ela explica como era difícil explicar ao seu povo que não era um ataque e provocação contra a Indonésia, mas uma luta pelos direitos humanos, e que hoje tem "um pai que é a Indonésia, uma mãe que é a Austrália e um tio que é Timor".

Está também o português Rui Correia, que organizou o programa das comemorações com a ajuda de Jacinto Alves, que trabalha na comissão de reconciliação dos timorenses, e de Gregório Saldanha, sobrevivente de Santa Cruz e organizador, no terreno, do grande protesto.

Diz-me Gregório que um dia foi condenado a prisão perpétua mas agora vive "condenado a liberdade perpétua" e que se animou, nos dias mais duros, com um navio que vinha honrar os mortos, os seus amigos.

Quanto a Rui Correia, aveirense em Timor há anos, cooperante nas várias eleições, embarcou há duas décadas no Lusitânia Expresso com a barba crescida, eu nem o reconhecia, tão escanhoado. Vai contar, para diversão da plateia da conferência internacional, o seu incrível segredo. Com formação de pára-quedista, o seu plano era fugir e juntar-se à resistência mal pusesse o pé em Díli.

Na confusão do cemitério, rastejava e desaparecia. Sem dizer nada. Nem uma carta deixava. Bem podia Rui Marques, e todos nós, protestar o tenebroso desaparecimento de um elemento do Lusitânia Expresso, Rui Correia, rapaz conhecido pelas suas opções pacifistas. Drama diplomático total. Só usou barba uma vez na vida e era para fugir para as montanhas, fazer-se guerrilheiro. Fez-se em vez disso membro da comissão de acompanhamento eleitoral, dentro da missão internacional.

Cinco quilómetros da igreja de Motael até ao cemitério de Santa Cruz, música e majorettes na frente do cortejo, famílias que levam a foto do seu morto em Santa Cruz e o cartaz com o nome, uma solenidade triste e orgulhosa. Furamos pela multidão e reencontro Donaciano Gomes, aliás Pedro Klamafuick. O único timorense a bordo do Lusitânia Expresso. Em tétum quer dizer Alma Abandonada, disseram-me isso Donaciano...

- Não, não, Klamafuick quer dizer Espírito Selvagem, é muito diferente!

Uma das dificuldades da tradução do tétum, língua oficial de Timor com o português (escolha cultural estratégica dos timorenses), é a sua plasticidade. Uma língua cheia dos espíritos antigos dos antepassados, como tudo o que mexe na ilha em forma de crocodilo. O padre Felgueiras, jesuíta de 91 anos, inabalável apoiante da resistência, em Timor desde 1971, diz-me que existe "um mistério da história, da providência, dois povos tão longe um do outro, mas pilares da humanidade". E para ele o Lusitânia "é uma epopeia".

Estarei mais tarde com Donaciano, no centro Padre António Vieira. Hoje é coronel. Dirige o centro de Estudos do Estado-Maior das Forças Armadas. Foi comandante máximo da Marinha de Timor, influência directa da nossa aventura de juventude. Trouxe, para conhecermos, a filha de um amigo. Uma jovem bonita, inesperada. Chama-se Lusitânia e tem 20 anos. Baptizada em honra do navio do ramo de flores. Lusitânia Nelina Madeira Soares, no registo.

- Os seus pais tiveram coragem ao dar-lhe esse nome...

- Pois tiveram -, diz Lusitânia.

Estamos, finalmente, a pôr as flores na campa de Sebastião Gomes. Fizemos gincana pelas campas. O calor dos trópicos está na força máxima, mas não é só isso. Acho que estou a chorar. Tinha aqui ficado meio litro, bloqueado a 13 milhas da costa.

Passei há pouco pela campa onde Max Stahl filmou, em 1991, um jovem a segurar outro, ferido na barriga, a pietà de Timor. Fizeram uma estátua na marginal, para inaugurar um dia. O ferido chama-se Levi e está a estudar em Coimbra, não morreu. Stahl passou ontem o filme completo num ecrã junto do cemitério, com outros documentários.

Os timorenses não se cansam de ver as imagens. Esta semana, no pavilhão desportivo, farão, aliás, uma inacreditável e perfeita recriação do massacre. E 300 jovens figurantes acabarão cobertos de sangue, a dançar e a cantar uma tragédia que os libertou. Porque Max a filmou e fez sair.

Stahl disse-me ontem duas coisas que eu desconhecia: as feridas do jovem são cinco golpes de baioneta no abdómen, não se trata de uma bala, era mesmo para matar. Foi este inglês, hoje com passaporte timorense, quem à noite voltou sozinho ao cemitério para recuperar as cassetes de vídeo originais, escondidas numa campa. Tivera a frieza de as trocar por cassetes inócuas, de turista, quando os militares lhe tiraram a câmara. Fez-se sempre de turista, entrou em Timor com a T-shirt "I Love Bali", uma câmara, no interrogatório de dez horas nunca se desmanchou. Foi actor de Shakespeare em Oxford. Apresentador da BBC para oito milhões de crianças. Conhece as guerrilhas da América do Sul todas, fez as guerras da Tchetchénia. Hoje vive em Díli com a mulher, os dois filhos pequenos frequentam a Escola Portuguesa Rui Cinatti.

Em 1999, foi também ele quem filmou a criancinha que caiu num buraco, às escuras, e não fez barulho, na fuga para as montanhas do pavilhão cercado da Unamet. Lembram-se, os olhos brilhantes com os infra-vermelhos? O filme que levou os portugueses e, de novo o mundo, a saírem à rua para salvar Timor. Nos dois momentos capitais da libertação do país, na prova definitiva de que a imprensa corajosa pode mudar tudo, lá está ele. Tira uma fotografia comigo, Max Stahl, nem sempre se encontra um herói.

Vou num Lusitânia pequenino, navio da guarda costeira. Saímos de Díli na direcção leste, dizem que o mar tem crocodilos aqui. O capitão do barco esteve preso pelos indonésios, agora é ele quem prende. Passamos ao largo do navio indonésio Jakarta, um grande cargueiro fundeado na baía e, como tal, obrigado a hastear o pavilhão de Timor-Leste (parece outra imagem de Tintin, o jovem repórter). Vejo a ilha do mar alto, outra vez. A missão acabou, penso que Timor saberá viver em paz. Mas ao certo ninguém sabe, tens de admitir. Sem mais nem menos, explode, como nas destruições de 2006.

Era preciso Timor estar muito louco para fazer uma coisa dessas ao mundo.

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