Resolvido o mistério do planeta que gira ao contrário
Se alguma vez os seres humanos pudessem viver no planeta Vénus, talvez o nascimento do Sol começasse por ser uma surpresa: de manhãzinha, o astro-rei apareceria a Oeste e não a Este, como acontece na Terra. A razão é simples: é que Vénus anda ao contrário de todos os outros planetas do sistema solar, ou seja, de Este para Oeste e por isso o Sol nasce do outro lado. Mas a razão por que Vénus gira ao contrário manteve-se sempre um mistério - até agora, pois dois astrofísicos, um português e um francês, acabam de propor uma solução para o mistério. Na última edição da revista "Nature", Alexandre Correia, que se encontra a fazer a tese de doutoramento no Observatório de Paris, e o seu orientador de tese, Jacques Laskar, da mesma instituição, explicam o intrigante movimento de rotação de Vénus. A equipa avança duas hipóteses: ou em algum momento da sua história Vénus deu uma cambalhota de 180 graus, literalmente, ou o seu eixo aproximou-se dos zero graus de inclinação e o planeta parou para, depois, começar a rodar em torno de si próprio em sentido contrário.Desde 1962 que o movimento de rotação deste planeta intriga os cientistas, pois foi nesse ano que Roland Carpenter e Richard Goldstein descobriram que gira ao contrário de todos os outros planetas do sistema solar, depois de fazerem experiências com radares a partir da Terra. Como a superfície de Vénus se encontra tapada por uma espessa camada de nuvens, não se conseguia ver em que sentido o planeta girava, por exemplo através de acidentes topográficos. Mas para os radares as nuvens são transparentes: as ondas enviadas do nosso planeta bateram na superfície de Vénus, foram reflectidas e, com base nesses dados, Carpenter e Goldstein concluíram que não só a rotação era ao contrário como era extremamente lenta. "Foi uma surpresa", diz ao PÚBLICO Alexandre Correia. Em 1993, a estranha rotação de Vénus foi confirmada por medições mais exactas da sonda Magalhães, que revelaram que o eixo de Vénus apresenta uma inclinação de quase 180 graus - mais exactamente, 177,3. Esta tornou-se a explicação tradicional. Como comparação, o eixo da Terra tem uma inclinação de 23,45 graus. Ou seja, parecia que Vénus tinha dado uma cambalhota e andava de cabeça para baixo. Os dados da Magalhães também permitiram determinar o período de rotação de Vénus - 243,02 dias terrestres. O Sol apenas nasce a cada 243 dias. Um dia venusiano é, assim, algo verdadeiramente bizarro - é mais longo que o ano, que tem 224 dias terrestres, o tempo que o planeta leva a completar uma órbita ao Sol.Só que os seres humanos nunca poderão viver nesse estranho mundo. Além de ter um ambiente corrosivo - as nuvens venusianas são formadas por compostos sulfurosos, em particular ácido sulfúrico -, a atmosfera de Vénus é formada por 98 por cento de dióxido de carbono. O efeito de estufa é enorme, fazendo com que a temperatura na superfície atinja os 470 graus Celsius. Mas se chegássemos à superfície de Vénus, seríamos esmagados pela enorme pressão atmosférica, que é 90 a 100 vezes superior à da Terra. É como se fôssemos transportados para o mar terrestre, a profundidades entre os 900 e os 1000 metros.Vénus nem sempre terá andado ao contrário. Quando o nosso sistema solar se formou, há 4600 milhões de anos, teria uma inclinação do eixo como quase todos os outros planetas, entre zero e 20 e tal graus, e girava na mesma direcção. Algo se passou, porém, com o planeta. É em 1969 que surge a primeira explicação plausível para a actual rotação do planeta, dada por Thomas Gold e Steven Soter. Diziam eles que a rotação ao contrário de Vénus teria resultado do equilíbrio de dois efeitos - as marés sólidas e as marés térmicas.As marés sólidas resultam do efeito gravitacional do Sol sobre a superfície do planeta, um fenómeno semelhante ao observado nas marés na Terra por causa da Lua. O que as marés sólidas provocam em Vénus é uma tendência para travar a rotação do planeta e endireitar o seu eixo até aos zero graus.Provocadas por variações de pressão na atmosfera por causa do aquecimento pelo Sol, as marés térmicas causam um efeito contrário no eixo do planeta: aceleram a rotação e o eixo tende a virar-se de cabeça para baixo, até aos 180 graus. Mas o efeito conjugado das marés sólidas e térmicas não explicava como é que o planeta se mantinha de cabeça para baixo e não voltava, por exemplo, a endireitar-se. Em 1979, William Ward e William DeCampli avançaram um terceiro efeito como explicação - a fricção entre o núcleo e o manto do planeta. Os três efeitos em conjunto conseguem explicar a actual rotação de Vénus, mas só se este tivesse uma inclinação do eixo de 45 graus desde o início. Mas isso é algo muito invulgar no sistema solar. À excepção de Urano, que anda com o eixo deitado, os planetas têm uma inclinação bastante inferior a 45 graus, lembra Alexandre Correia. Por isso, todas estas explicações ainda eram insuficientes. Em 1993, Jacques Laskar e Philippe Robutel, também do Observatório de Paris, descobriram um quarto efeito: as perturbações provocadas por outros planetas no eixo de Vénus, a que os físicos chamam ressonância. Agora, o trabalho de Alexandre Correia e Jacques Laskar é pura matemática. Nenhum fez observações do planeta. Usaram as medições já feitas para construir um modelo matemático que explicasse a rotação de Vénus. "É uma demonstração matemática", conta o astrofísico português.Depois de analisarem as equações dos quatro efeitos conjugados, os cientistas concluíram que Vénus só poderia ter quatro rotações possíveis desde a formação, e nem mais nem menos. "As equações que governam a dinâmica de Vénus apenas admitem quatro estados estáveis. É um resultado simples, mas que tinha passado despercebido até agora", frisa. Em dois desses estados, o planeta rodaria no mesmo sentido de todos os outros e nas restantes duas andaria ao contrário. E estas duas últimas, as que se observam na realidade, são também as mais prováveis segundo o modelo e são as que explicam por que é que Vénus anda ao contrário. Como o fez é que continua a ser um mistério. Pode simplesmente ter dado uma cambalhota de 180 graus que o deixou de cabeça para baixo. Mas isso pode nunca ter acontecido. Se calhar o eixo ficou com uma inclinação de zero graus e a sua rotação tornou-se tão lenta que parou. Quando voltou a girar em torno de si próprio, virou-se em sentindo contrário. Qual das hipóteses é verdade, não se sabe. "A única maneira de saber isso seria estar no início da formação do sistema solar", remata Alexandre Correia.