Estudantes portugueses num laboratório vivo na Grécia

Pela primeira vez, estudantes portugueses do secundário trocaram as férias por duas semanas de voluntariado numa expedição organizada pela ONG britânica Operation Wallacea. Os dados que recolheram vão sustentar projectos de conservação da Natureza, entre eles a criação de um santuário marinho.

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Acordar com o nascer do Sol, ou mesmo antes. Fazer fila para o pequeno-almoço, ainda de olhos meio fechados. Deixar a base de mochila às costas, passar o dia a fazer pesquisas no mar (sem ter a toalha estendida na areia) e só voltar ao final da tarde para uma aula sobre pradarias marinhas. Ou para apanhar escaravelhos com copos enterrados no chão. Quem disse que passar parte do Verão nas ilhas gregas com os amigos era sinónimo de férias?

Para 15 alunos de colégios privados das zonas de Lisboa e Porto não foi. Em Julho e Agosto os jovens participaram numa expedição científica na Grécia, promovida pela Operation Wallacea (Opwall). Esta organização não governamental (ONG) britânica conduz pesquisas de larga escala sobre biodiversidade, levando para o terreno cientistas e investigadores (que estão, nalguns casos, a desenvolver trabalhos de pós-graduação ou doutoramento), aos quais junta estudantes dos ensinos secundário e universitário em regime de voluntariado. Os alunos participam nas recolhas de dados e, ao pagarem pela experiência, estão indirectamente a financiar projectos de conservação.

Apesar de pouco comum em Portugal, o conceito de citizen-science (ciência do cidadão), em que voluntários pagam para participar em projectos científicos, é muito popular nos países do Norte da Europa e nos EUA. Para os estudantes, é uma forma de enriquecer o currículo e ganhar créditos no percurso académico. Para a Opwall, os adolescentes são "um óptimo recurso" porque têm uma grande aptidão física e intelectual para se envolverem nas expedições, afirma Alex Tozer, director operacional da organização. “Este modelo permite-nos influenciar positivamente a próxima geração de biólogos e conservacionistas”, acrescenta, sublinhando a importância de aprender como se faz Ciência fora da sala de aula.

Actualmente, a Opwall conduz expedições em 14 países (ver caixa), nos quais estabelece parcerias com organizações locais que ajudam a definir apostas e prioridades em termos de pesquisa, fazendo também a ponte com as populações. No caso da Grécia, a ONG britânica começou a trabalhar em 2015 com a Archipelagos – Instituto de Conservação Marinha, que tem em curso projectos de conservação marinha e terrestre em sete ilhas do Egeu – Lipsi, Icaria, Leros, Arki, Marathi, Ouinosses e Samos.

Durante duas semanas, dez alunos do Colégio St. Peters em Palmela (Setúbal) e do Colégio Planalto em Lisboa, com idades entre os 15 e os 18 anos, acompanhados pelo professor de Biologia, participaram nas pesquisas desenvolvidas em Samos e Lipsi. Mais tarde juntaram-se à expedição mais cinco estudantes do Instituto de Educação e Desenvolvimento (INED) de Nevogilde, outro colégio privado, do concelho do Porto. O PÚBLICO acompanhou os dez primeiros.

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Os dados recolhidos no mapeamento das pradarias marinhas serão o ponto de partida para a criação de um santuário marinho, o primeiro do género na Grécia

Aquário em mar aberto

Os dias começam cedo para os jovens cientistas, entre as seis e as oito da manhã, dependendo da actividade destinada a cada grupo. A distribuição de tarefas é feita no dia anterior e por isso quando saem da base, situada na vila de Lipsi (a única povoação nesta pequena ilha situada no sudeste do Egeu, mar interior da bacia do Mediterrâneo), os alunos - dez portugueses e nove universitários de Inglaterra, EUA e Canadá - já sabem o que os espera.

À vez, todos vão fazer um pouco de tudo, lado a lado com os investigadores: observar pássaros em terra ou a bordo de um barco à volta da ilha; montar armadilhas para capturar pequenas aves (libertadas mais tarde) e aprender a identificá-las; enterrar copos no chão para apanhar insectos e estudá-los ao pormenor; contar populações de peixes no mar ou mapear pradarias marinhas. De todas as actividades, esta última é talvez a mais importante: os dados recolhidos serão o ponto de partida para a criação de um santuário marinho, o primeiro do género na Grécia.

Os alunos aprenderam a montar o equipamento de mergulho e partiram à descoberta do fundo do mar Egeu
Concentração máxima nas primeiras aulas de piscina, antes de mergulhar no fundo do mar
Os investigadores estão a analisar as populações de peixes no mar Egeu para perceber a sua relação com a densidade de pradarias marinhas
Depois de perceberem que é possível respirar debaixo de água e até comunicar com os parceiros, os alunos querem agora continuar a mergulhar em Portugal
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Os alunos aprenderam a montar o equipamento de mergulho e partiram à descoberta do fundo do mar Egeu

“Vai ser um aquário em mar aberto”, resume Anastasia Miliou, directora científica da Archipelagos. O projecto está a nascer na baía de Verulia, na zona nordeste da ilha, e visa por um lado recriar o ecossistema original do Mediterrâneo, como era antes de qualquer impacto humano, e por outro lado criar uma zona-refúgio para animais marinhos. A ideia nasceu de uma “união de forças” entre a Archipelagos e a autarquia local. “Por viverem numa ilha tão pequena [16 quilómetros quadrados, com 790 residentes] e isolada, as pessoas têm uma grande vontade de encontrar formas para se desenvolverem através da conservação”, afirma a bióloga marinha especialista em pescas.

Lipsi não tem ligações diárias com a capital, Atenas. O ferry é o único meio de transporte público para outras ilhas e a viagem até Samos, uma das ilhas principais mais próximas, fica a pelo menos três horas de distância. A dependência do exterior é enorme – até a água que corre nas torneiras é importada, obrigando muitas vezes ao racionamento – e a economia local sustenta-se sobretudo na pesca e no turismo, atraído pelas belas paisagens e praias de água cristalina, pelo que a população está muito empenhada na protecção dos recursos naturais. Por exemplo, Lipsi é uma das poucas ilhas gregas onde se faz separação de lixo (os resíduos são enviados para reciclagem em Atenas) e onde existem sistemas de saneamento de águas residuais.

Nos últimos anos, a Archipelagos tem trabalhado de perto com os pescadores (existem cerca de 30 barcos de pesca na ilha), que enfrentam dias difíceis. “Estão a apanhar tão pouco peixe que mal conseguem sobreviver”, diz Anastasia Miliou, apontando o dedo aos trawlers, barcos que pescam grandes quantidades de peixe através do método de arrasto e arrasam também os habitats, onde se incluem corais e pradarias marinhas, essenciais para manter a saúde do ecossistema.

Segundo a bióloga marinha, o santuário vai funcionar como um laboratório onde os investigadores podem testar novas abordagens que permitam inverter o cenário actual. “Se os stocks de peixe estão a diminuir, podemos encontrar formas de aumentá-los e de ter uma área mais biodiversa.” Como? Por exemplo, através da criação de recifes artificiais ou da plantação de mais pradarias (a espécie endémica do Mediterrâneo é a Posidonia oceanica), porque onde existe vegetação saudável e abundante há mais peixes.

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Lipsi não tem ligações diárias com a capital, Atenas. O "ferry" é o único meio de transporte público para outras ilhas e a viagem até Samos fica a pelo menos três horas de distância

Recuperar habitats

Antes de qualquer intervenção é preciso fazer uma espécie de “raio-X” à baía para saber exactamente qual o ponto de partida. “Estamos ainda no momento zero, a registar a biodiversidade que existe antes de qualquer mudança”, afirma, sublinhando o papel “precioso” dos voluntários na recolha de informação, que só começou este ano mas está já praticamente completa.

Em poucos dias, o nome Posidonia oceanica já está na ponta da língua dos jovens estudantes. Nas aulas dadas pelos investigadores, os alunos aprenderam que as folhas verdes e compridas desta espécie de erva servem de abrigo a várias espécies de peixes e invertebrados, ajudam a prevenir o excesso de nutrientes na água e evitam a erosão costeira, ao dissiparem a energia das ondas e das correntes. E aprenderam também a estudá-las.

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Os estudantes usam caiaques para percorrer a baía e mapear a vegetação endémica da bacia mediterrânica

Para chegar à baía de Verulia é preciso ir de autocarro até uma das várias praias paradisíacas de Lipsi, deixar a estrada de alcatrão e seguir a pé por um trilho de pedras soltas e terra batida, rasgado no meio da vegetação rasteira. O caminho serpenteia pelo monte até descer a pique para uma língua de mar azul turquesa, encaixada entre as rochas. O único vestígio de ocupação humana é um antigo armazém de uma empresa de aquacultura, que esteve fechado durante 20 anos até a Archipelagos tomar conta dele, este ano. O edifício à beira-mar será a futura base da organização na ilha.

A missão dos estudantes é usar caiaques para percorrer a baía em ziguezague, de uma margem à outra, e mapear as pradarias. Dois a dois, os jovens assumem os seus postos nas pequenas embarcações e têm de remar em equipa: enquanto um é responsável por mergulhar a câmara de filmar na água, outro controla o sonar instalado numa ponta do caiaque; uns ficam encarregues de ler o GPS, ao passo que outros tiram notas.

"A informação recolhida vai ser analisada e descarregada num site que, ao cruzar todos os dados, permite traçar um mapa completo do local”, para consulta dos investigadores, explica Christos Chatzitheodorou, engenheiro electrotécnico a trabalhar com a Archipelagos. A utilização do sonar permite saber a profundidade da baía, o tipo de fundo (rochoso, arenoso ou com vegetação), a temperatura da água ou a quantidade de peixe. As filmagens feitas com a câmara subaquática e com um drone fornecem "camadas extra de informação", diz Niki Cesta, investigadora especialista em mapeamento de geosistemas a trabalhar com a organização grega. Por exemplo, o sonar pode indicar a presença de Posidonia oceanica mas só as imagens subaquáticas permitem apurar o "estado de saúde" das ervas, visível através da coloração das folhas: verde é saudável, castanho ou amarelado é doente. 

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A próxima fase do projecto, que deverá arrancar nos próximos meses, passa pela instalação de uma rede à entrada da baía, a cerca de 400 metros da linha de costa, com uma espécie de cortina que permite a passagem dos animais. A ideia é criar ali um refúgio-hospital para mamíferos como golfinhos, focas-monge (espécie em perigo de extinção, que se encontra ainda nas ilhas do Egeu) ou mesmo tartarugas em fim de vida. “Os animais marinhos não têm actualmente um local onde possam ser tratados no Mediterrâneo Este, e onde possam viver em condições semi-selvagens”, afirma a directora científica da Archipelagos.

Paralelamente, os investigadores estão a efectuar pesquisas em outros locais à volta da ilha. "Estamos também a olhar para as populações de peixes, as pradarias marinhas e os invertebrados existentes noutras zonas, para podermos perceber se eventuais mudanças em Verulia ao longo do tempo estão relacionadas com a intervenção ou se são alterações gerais que ocorrem em toda a ilha", diz Alex Tozer. Nestas pesquisas não são utilizados caiaques, mas sim as técnicas que os alunos aprenderam na semana anterior em Samos (ver texto secundário), como o mergulho em apneia e o snorkelling

“Nunca tinha feito uma coisa assim”, admite Miguel Correia, 16 anos, aluno do Colégio Planalto. “Tínhamos que nadar até ao fundo do mar [vestidos com fatos de neoprene, barbatanas, máscara e snorkell, cinto de chumbo à cintura] e pôr os quadrados em cima da erva para definir a área que íamos estudar”, descreve. É um trabalho de equipa – e de “paciência”, sublinha. Enquanto um grupo mergulha para medir as folhas e avaliar a saúde das ervas pela sua coloração e tamanho, outro grupo anda à tona para fazer a contagem de peixes e registar numa pequena placa de plástico branco as espécies existentes: cabozes, bogas, chocos, douradas e estrelas do mar são as mais comuns. O objectivo é perceber de que forma a densidade das pradarias marinhas influencia a fauna marinha. 

“Antes não sabia como se faziam as pesquisas que dão origem àqueles artigos científicos que vemos na Internet, sobre estudos marinhos e assim”, diz Isabella Nishimura, 16 anos, do Colégio St. Peters. “Na escola fazemos experiências em laboratório, escrevemos relatórios, mas nunca fizemos parte de uma coisa tão grande”, reconhece.

Tanto os alunos do Planalto como os do St.Peters estão matriculados num programa designado Bacharelato Internacional (IB, na sigla em inglês), que dá equivalência ao ensino secundário regular mas tem algumas diferenças. Para além de todas as aulas serem leccionadas em inglês (à excepção da disciplina de Português), o programa inclui trabalhos extra-curriculares de serviço à comunidade e actividades criativas. Alguns alunos aproveitaram a experiência na Grécia para fazer trabalhos que vão pesar nas notas finais.

Com os olhos postos no céu, estudantes e investigadores recolheram dados sobre as aves que sobrevoam aquelas ilhas gregas, para a criação de um 'site' sobre 'birdwatching'
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Com os olhos postos no céu, estudantes e investigadores recolheram dados sobre as aves que sobrevoam aquelas ilhas gregas, para a criação de um 'site' sobre 'birdwatching'

Miguel Coelho, o professor de Biologia que os acompanhou nesta aventura, deixou o aviso. “Disse-lhes: não sei se têm noção de que estão a participar num projecto que se calhar vai permitir que os vossos filhos, no futuro, venham à Grécia e ainda possam ver isto.” No grupo há quem queira seguir Medicina, Biologia ou outras profissões ligadas às Ciências Naturais, pelo que para alguns jovens este foi o primeiro contacto com uma realidade que, eventualmente, irão encontrar no percurso profissional.

O professor sublinha que o facto de os adolescentes terem de trabalhar em grupo, com pessoas de diferentes contextos e culturas, longe da família e das comodidades de casa, também os ajuda a crescer e a reforçar laços de amizade.

“Estar em novos ambientes, ver como vivem outras pessoas”, mudou a forma como Isabella Nishimura vê o mundo. Em Lipsi não existe um hospital – em determinadas datas, anunciadas através do altifalante instalado nas ruas da vila, os médicos especialistas deslocam-se ali para dar consultas preventivas. Isabella quer estudar medicina e isso deixou-a a pensar nas dificuldades de viver numa zona isolada, bem diferente da cidade onde mora. “Foi muito bom para mim”, garante.

Os colégios Planalto e St. Peters foram a estreia da participação portuguesa nas expedições da Opwall. José Miguel, representante da organização na Península Ibérica, está desde 2015 a bater à porta das escolas portuguesas e espanholas para falar das expedições. A lista de interessados para as edições de 2017 e 2018 já é extensa, inclui instituições de ensino privado e público, e terá repetentes.

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