O uivo do chacal e o camaleão adormecido

De dia, aprender a mergulhar. À noite, seguir o rasto do chacal-dourado e andar de lanterna em punho à procura de camaleões - uma espécie de "onde está o Wally" em versão vida selvagem. A primeira semana da expedição da Opwall, em Samos, foi cheia de emoções fortes para os alunos portugueses.

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Maria Oliveira tinha que ver camaleões. Pelo menos um. Enquanto esperava pela noite em que o seu grupo estaria destacado para sair à procura dos répteis, a estudante de 16 anos ia pensando na música que cantaria quando os encontrasse. Quando finalmente teve a sorte de ver o seu "segundo animal preferido" (a seguir ao cão), o refrão de um dos hits dos britânicos Culture Club, dos anos 80, já estava na ponta da língua: "Karma Karma Karma Karma Karma Chameleon, You come and go, You come and go." A viagem à Grécia mal tinha começado e já tinha valido a pena.

O camaleão-comum (Chamaeleo chamaeleon) existe em vários paises mediterrânicos (incluindo em Portugal, no Algarve), mas a única população conhecida na Grécia está em Samos. Porquê? E qual a sua dimensão? Isso é o que os herpetologistas envolvidos na expedição organizada pela Operation Wallacea, em parceria com a Archipelagos, estão a tentar descobrir. De noite vão para o campo à procura de camaleões, identificam-nos, e de dia estudam os seus habitats preferidos, para mais tarde traçarem medidas de protecção.

Só na expedição deste Verão, a investigadora polaca Olga Sawoscianik encontrou perto de 35 camaleões, um número bastante superior aos registados em anos anteriores. Mas não se sabe se a população está a aumentar ou se apenas há mais conhecimento sobre ela – e mais olhos a procurar.

Maria não esconde que esteve quase a perder a esperança, depois de mais de meia hora a caminhar por entre pinheiros, oliveiras, alfarrobeiras e tojos sem encontrar nada. O grupo – uma dezena de pessoas, entre alunos e investigadores – dividiu-se para inspeccionar de forma mais eficaz uma faixa de terreno que se estende por 700 metros. Até que a luz da lanterna do professor Miguel Coelho reflectiu a cor verde clara, quase branca, do pequeno réptil adormecido no ramo de uma oliveira, junto à praia da igreja, na costa sudeste de Samos.

Todos quiseram pegar-lhe, ver de perto os olhos grandes que rodam num ângulo de 360º, sentir a pele rugosa que entretanto já estava às manchas escuras (a mudança de cor, assim como o aumento do tamanho, são estratégias de defesa). Mas antes foi preciso anotar tudo: o local onde estava, a hora a que foi encontrado, o tamanho, o peso, marcas distintivas. Depois da análise completa o camaleão foi colocado exactamente no mesmo ramo onde se encontrava, para continuar o sono.

“Esta é uma espécie interessante porque oferece serviços importantes ao ecossistema", explica Ruth Cox, especialista em ecologia populacional e epidemiologia, convidada pela Opwall para acompanhar a expedição.

O camaleão alimenta-se de insectos e invertebrados, ajudando a controlar as populações de algumas espécies que destroem as culturas agrícolas, por exemplo. Mas enfrenta ameaças de peso como o tráfico de animais e as mudanças no uso dos solos e das técnicas agrícolas. "Ele põe os ovos no solo e as crias demoram dez a 12 meses a nascer. Se os campos forem aplanados, os ovos são desenterrados e não sobrevivem", diz a especialista.

"Os habitantes da ilha [cerca de 34 mil pessoas] sabem que estas espécies existem aqui mas não sabem qual a sua importância", lamenta Anastasia Miliou, directora científica da Archipelagos. "E esta é a lacuna que nós, a Operation Wallacea e todos os cientistas que trabalham connosco, estamos arduamente a tentar resolver, enquanto ainda há tempo", acrescenta.

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Berço de cientistas

A base da Archipelagos em Samos fica num antigo hotel à beira do mar Egeu, rodeado por campos e vinhas, aos pés de uma encosta pontuada por uma dúzia de edifícios coloridos – entre eles o hotel que deu guarida aos investigadores e voluntários da expedição.

A cidade mais próxima, a quatro quilómetros, é Pitagório, baptizada em homenagem ao filósofo e matemático Pitágoras, que nasceu em Samos no século VI a.C.. A ilha é, aliás, uma berço de cientistas: ali nasceram, por exemplo, o filósofo Epicuro e o astrónomo Aristarco, o primeiro a propor que a Terra gira em torno do Sol. “Se este ambiente fosse suficiente para inspirar os jovens cientistas, o nosso trabalho estaria feito”, brinca Anastasia Miliou.

Mas não foi por isso que a Archipelagos resolveu instalar a sede em Samos. A ilha, encaixada num corredor entre Europa, Ásia e África, é “um verdadeiro hotspot” de biodiversidade, nota a bióloga marinha, sublinhando que a proximidade com a Turquia (a costa sudeste de Samos fica a apenas uma milha náutica do Parque Nacional da Península de Dilek, em solo turco) faz daquele território “um enorme laboratório vivo”. “O problema é que este incrível mundo natural é desconhecido, e não se pode proteger o que não se conhece”, lamenta.

Anastasia Miliou diz que a actividade da organização está focada na protecção de "espécies bandeira" cuja conservação está em risco. "Ao fazermos isso protegemos as que estão mais abaixo na cadeia do ecossistema”, explica.

Além do camaleão-comum, também o chacal-dourado (Canis anthus) está na lista de preocupações dos biólogos. Samos é a única ilha da zona do Mediterrâneo onde existe esta espécie de lobo, que fornece um importante serviço de “limpeza” ao ecossistema. “É muito invulgar uma ilha suportar um predador de topo como o chacal. É muito bom sinal, indicador de um ecossistema saudável”, sublinha Ruth Cox. Mas mais uma vez, ainda há muito por saber. E é aqui que entram os alunos portugueses.

Se há uns meses lhe tivessem dito que iria tentar comunicar com chacais debaixo um céu hiper-estrelado, Miguel Correia não iria acreditar. Mas foi essa a função que lhe coube quando o seu grupo rumou em direcção às montanhas à procura dos canídeos. Cada elemento ficou responsável por uma tarefa: verificar as coordenadas no GPS, ler a bússola, contar o tempo até uma eventual resposta, apontar todos os dados. Miguel tinha de ligar o altifalante para reproduzir o uivo de um chacal, previamente gravado, enquanto rodava sobre si próprio. “Não deu resultado, devia ter sido mesmo eu a imitá-lo com a minha voz”, diz o aluno do Colégio Planalto. Naquela noite, só os cães responderam.

As saídas de campo para “chamar” chacais e a utilização de armadilhas fotográficas para saber os locais por onde passam servem para estudar a dimensão da população e a sua distribuição pela ilha. Segundo o investigador que acompanhou os alunos, Rob James, especialista em ecologia de carnívoros e dinâmicas populacionais de mamíferos, as estimativas apontam para a existência de 15 a 27 grupos de chacais-dourados em Samos, e cada grupo tem dois a sete individuos. “Estamos particularmente interessados em saber que factores podem afectar essa distribuição, e também queremos conhecer a diversidade genética da comunidade”, explica Alex Tozer, director operacional da Opwall.

Os dados sobre o estado de conservação da espécie são muito limitados mas segundo estudos citados pelo Fundo Mundial para a Natureza (WWF, na sigla em inglês), que em 2004 traçou um plano de acção para o chacal-dourado na Grécia, a população entrou em declínio na década de 1970. As principais ameaças são a fragmentação dos habitats (pelo surgimento de áreas urbanas, por exemplo), os atropelamentos e o envenenamento intencional ou acidental – os chacais alimentam-se de pequenos roedores ou de carcaças de animais mortos, muitas vezes também envenenados.

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As saídas de campo para “chamar” chacais e a utilização de armadilhas fotográficas para saber os locais por onde passam servem para estudar a dimensão da população e a sua distribuição pela ilha

Sementes que hão-de dar fruto

A Archipelagos está a trabalhar com a população, sensibilizando-a para a importância da vida selvagem e para os cuidados a ter para a preservar. Anastasia Miliou diz que a presença dos cientistas e dos estudantes nos locais de pesquisa “são uma boa forma de exercer pressão nas comunidades, para que percebam que muitas pessoas se preocupam”.

Para a bióloga marinha, envolver os voluntários nas investigações é uma forma “plantar sementes” que hão-de dar fruto. “Primeiro abrimos-lhes a janela e quando eles conseguem ver, quando lhes damos as competências certas, eles querem saber mais.”

A “janela” preferida de Isabella Nishimura foi a que se abriu para o mar. Tal como a maioria dos alunos portugueses que participaram na expedição, Isabella foi para Samos na expectativa de aprender a mergulhar (com garrafa de ar), já que o curso estava incluído no pacote da experiência de voluntariado. Por achar que "o mergulho recreativo se conjuga bem com a educação ambiental", a Opwall levou para a ilha uma mão cheia de instrutores de mergulho, que acompanharam os jovens nas aulas de piscina e de mar.

Isabella “ia morrendo” na primeira aula de piscina mas sobreviveu para contar a história. “Sempre pensei que ia sentir grande dificuldade a respirar debaixo de água, porque tenho tendência para respirar sempre pelo nariz, então quando estava a respirar pela boca [através do regulador] era um pouco estranho”, recorda. 

“Foi espectacular”, diz por seu lado Maria Oliveira, admitindo porém que “estava à espera de ver mais peixes no mar”. O problema da sobrepesca é transversal a toda a bacia do Mediterrâneo e assume proporções preocupantes na Grécia. “Temos muito poucas zonas de pesca proibida”, lamenta Anastasia Miliou, acrescentando que a organização está a lutar para inverter esse cenário, pressionando as autoridades. “Demora tempo, exige esforço, e acho que ainda vai demorar até conseguirmos envolvê-las nesta luta mais activamente.”

Os olhos dos investigadores e dos voluntários estiveram também postos no ar – à procura do falcão de Eleanora, que se reproduz na zona, de águias, flamingos, rolieiros, corvos, cegonhas-negras, e de muitas outras espécies residentes na ilha ou de passagem no caminho para África. A informação recolhida nas saídas matinais vai alimentar um site destinado aos amantes de birdwatching, que estará disponível no final deste mês.

A ideia, explica Alex Tozer, é pôr Samos no mapa do turismo de Natureza e divulgar a sua “diversidade fantástica” de avifauna, permitindo cumprir um dos objectivos principais da Archipelagos: ligar os resultados das pesquisas científicas ao dia-a-dia das comunidades locais, que podem encontrar na biodiversidade uma forma de recuperar o sector do turismo, recentemente afectado pela crise dos refugiados.

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