Morreu João Lobo Antunes, o neurocirurgião da tradição humanista

Prémio Pessoa de 1996, marcou a neurocirurgia portuguesa criando um “sentimento de escola”. Era actualmente presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Tinha 72 anos.

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João Lobo Antunes (1944-2016) PEDRO CUNHA

Terão sido muitas as vezes em que o neurocirurgião João Lobo Antunes se deparou com o outro na sua mais profunda nudez anatómica. Prémio Pessoa em 1996, distinguido por ser um “renovador e intérprete da tradição médica humanista”, era ele que relia o acto cirúrgico como um acto sagrado, numa sucessão de imagens que remetem para um ritual. As mãos limpas, purificadas, a vítima inocente, a dormir. À sua frente, o órgão onde convivem emoções, sentimentos, memórias, uma consciência. O médico português morreu de cancro nesta quinta-feira, em Lisboa, aos 72 anos. O velório será esta sexta-feira a partir das 18h na Basílica da Estrela, em Lisboa, e as exéquias fúnebres serão no sábado às 9h (e não às 10h, como inicialmente anunciado), presididas pelo patriarca de Lisboa, Manuel Clemente.

“Enquanto as mãos me obedecerem e o cérebro souber mandar, vou continuar”, disse o neurocirurgião, em Junho de 2014, na última aula como professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, assegurando que, apesar da jubilação, a prática cirúrgica era então ainda futuro. Um ano depois teve de abandonar a sala de cirurgia devido à doença.

A palestra em 2014 foi uma revisitação da sua história, numa aula a que chamou Uma vida examinada, dada para uma plateia que transbordava no Instituto de Medicina Molecular, em Lisboa. A sua profissão, um tema que se entrelaça com a sua vida, surgia ali como se se tratasse de uma característica genética. O seu pai, João Alfredo Lobo Antunes, tinha sido médico, assim como dois irmãos, António Lobo Antunes (que se especializou em psiquiatria e só depois se dedicou inteiramente à literatura) e Nuno Lobo Antunes.

Mas em 2006, numa entrevista ao PÚBLICO, o neurocirurgião revelava mais sobre a relação que tinha com a medicina. “Provavelmente a medicina era aquilo que se adaptava melhor ao meu tipo intelectual e temperamental, à minha visão larga e abraçante da vida e das pessoas. Quando perguntávamos aos alunos que queriam entrar para Medicina ‘por que é que escolheu Medicina?’, a resposta era, invariavelmente, ‘porque quero ajudar os outros’. Não foi certamente por essa razão explícita que eu fui para Medicina, como se a medicina pudesse ser outra coisa”, explicava. “Por isso, digo que a medicina me fez médico, a medicina assim o quis.”

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Na sua última aula, em 2014, na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa Sandra Ribeiro

Da medicina à escrita

Nascido em Lisboa, a 4 de Junho de 1944, João Lobo Antunes é o segundo de seis filhos de Maria Margarida Machado de Almeida Lima e João Alfredo Lobo Antunes, uma família da alta burguesia de Benfica. A educação rigorosa que teve traduziu-se no seu brilhante percurso pelo Liceu Camões e pela licenciatura em Medicina, que concluiu com média de 19,47. “Estudava das 9h às 13h, parava para almoçar, continuava das 15h às 20h, parava para ir jantar e voltava das 21h até às 23h”, disse, na sua última aula.

Depois da licenciatura, fez uma passagem pelo Hospital Júlio de Matos e por outras instituições. Entre 1971 e 1984 trabalhou no Instituto de Neurologia da Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque, onde se doutorou com uma tese sobre a regulação nervosa da função reprodutora no macaco.

A estadia nos Estados Unidos foi importante para mostrar um novo modo de estar. “A competição era muito grande, mas eu sabia que, com trabalho, com resultados, era julgado só por isso, não era julgado por ser filho do pai, ou irmão do outro, ou sobrinho do professor”, disse, numa outra entrevista ao PÚBLICO, em 1995, revelando um dos contrastes que sentiu entre a cultura norte-americana e a portuguesa.

Apesar disso, voltou a Portugal em 1984. Cá, destacou-se na sua área. Entre 1984 e 2014 foi director do Serviço de Neurocirurgia do Hospital de Santa Maria. E foi acumulando cargos. Foi presidente da Sociedade Europeia de Neurocirurgia, do Instituto de Medicina Molecular, em Lisboa. Ainda em 2015, foi eleito presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.

Em 1996, o mesmo ano do Prémio Pessoa, João Lobo Antunes publicou Um Modo de Ser (Gradiva), a primeira de várias obras que foi escrevendo, como uma biografia de Egas Moniz, de 2010. Em Um Modo Ser, foram reunidos textos lidos pelo neurocirurgião em conferências. Há capítulos sobre a ética em medicina, o tratamento da dor, o erro durante a prática médica ou as dificuldades da educação dos estudantes de Medicina. Da leitura de vários capítulos, é notório que se está diante de um homem pragmático, sem medo de temas polémicos e com um grau alto de exigência.   

Com esse livro, o neurocirurgião “não aparece só como uma figura distinta da medicina portuguesa”, explicava em 1996 a investigadora Maria de Sousa, que fez parte do júri do Prémio Pessoa, mas contribuía para “criar uma memória colectiva que dá origem a um sentimento de escola”, ou seja, o médico situava-se “na grande tradição da medicina humanista”.

No ano seguinte, a publicação do De Profundis, Valsa Lenta liga dois prémios Pessoa de anos consecutivos. Naquela obra, José Cardoso Pires (1925-1998) escreve na primeira pessoa a experiência de um acidente vascular cerebral que sofreu em Janeiro de 1995, em que acabou por ser seguido por João Lobo Antunes. “Foi numa manhã cinzenta que nunca mais esquecerei, as pessoas a falarem não sei de quê e eu a correr a sala com o olhar, o chão, as paredes, o enorme plátano por trás da varanda. Parei na chávena e fiquei. Sinto-me mal, nunca me senti assim, murmurei numa fria tranquilidade”, lê-se logo no início da narrativa, em que o escritor pinta um quadro de perda de personalidade e distanciamento desencadeados pelo acidente.

A obra foi uma das justificações para Cardoso Pires ser galardoado com o Prémio Pessoa 1997. João Lobo Antunes, a convite do autor, tinha escrito o prefácio do livro. “Devo dizer-lhe que é escassa a produção literária sobre a doença vascular cerebral. A razão é simples: é que ela seca a fonte de onde brota o pensamento”, refere o neurocirurgião, num texto intitulado Carta a um amigo-novo, em que explica a raridade e a riqueza daquele testemunho. “Os fenómenos que descreve são mais facilmente apreensíveis através dos seus instrumentos narrativos do que através de um relatório minucioso de um qualquer neuropsicólogo.”

Na esfera pública, João Lobo Antunes destacou-se ainda por ser mandatário da candidatura à Presidência da República primeiro de Jorge Sampaio e, passados cinco anos, de Cavaco Silva. “É muito mais aquilo que os une do que aquilo que os separa”, diria em 2005, numa pequena entrevista ao PÚBLICO sobre as razões que o levaram a apoiar Cavaco Silva.

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Lobo Antunes com Sampaio no anúncio da recandidatura a Belém, em 2000 Pedro Cunha
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Lobo Antunes, em 2010, na recandidatura de Cavaco à Presidência Nuno Ferreira Santos

O mistério do cérebro

Mas o seu dia-a-dia era o hospital, onde gostava de manter um ritmo de 400 intervenções cirúrgicas por ano, e trabalhava ainda ao domingo, em casa. “Sou um ritualista”, disse numa entrevista ao semanário Expresso, em 2000, explicando que não quebrava as regras. “Quando eu digo a mim mesmo que antes de me ir embora tenho de ir lá acima ver o doente do quarto número tal, vou, mesmo que não me apeteça nada, que não seja preciso, que o doente de manhã tivesse estado bem e já seja muito tarde.”

É nesse contexto, de trabalho e respeito para com os doentes, que refere dois filósofos, Fernando Gil – que se tornou um importante amigo – e Immanuel Kant: “Construí-me dentro da doutrina médica, no sentido mais vasto, mais humano, o sentido da filosofia de uma profissão que, como o Fernando Gil escreveu num texto admirável, é a profissão que mais próxima está do ‘imperativo kantiano.’”

Vivendo o risco diário de mudar para sempre o mais íntimo de cada um, o neurocirurgião explicou o mistério que é operar o cérebro humano. “Na arte (no sentido artesanal, não no sentido artístico) que pratico, criei uma intimidade com um órgão único que é o cérebro, que tem uma beleza estética, até formal, que me encanta”, disse ao Expresso. “A arte cirúrgica é a que permite a revelação mais límpida daquilo que é fascinante, que é o pulsar, o pulsar da vida, que é o saber que ali se anicham, sabe-se lá onde, sentimentos, emoções, a atenção, a vontade, a memória, etc., num barro que parece uniforme, mas que não é. Isto convive, ao mesmo tempo, com o terrível saber que um passo em falso pode de alguma forma destruir esta harmonia para sempre.”

Quando chegou aos 70 anos e deixou de ter de pôr o despertador para ir para o Hospital de Santa Maria todas as manhãs, coisa que lhe dava imenso prazer, João Lobo Antunes decidiu que ia entreter-se com a sua história e escrever as suas memórias, procurando explicar como é que se fez cirurgião do cérebro, disse numa entrevista ao Jornal de Letras (JL) em Outubro do ano passado.

Trabalhou neste projecto com empenho – era assim em tudo o que fazia – até que a doença o impediu de continuar, disse ao PÚBLICO Guilherme Valente, seu editor e amigo. O responsável pelo catálogo da Gradiva manteve-se em contacto com o médico-escritor, mas não sabe em que ponto deixou ele esta última obra. Se a terminou, a editora dos seus Inquietação Interminável – Ensaios sobre Ética das Ciências da Vida (2010) ou do mais recente Ouvir com Outros Olhos (2015) está disponível para a publicar. “Tem-me dado muito prazer escrever estas memórias”, disse Lobo Antunes ao JL em 2015. “A ameaça de mortalidade que a minha vida atravessa neste momento, que tenho encarado com relativo optimismo, faz com que esteja envolvido nessa tarefa quase como uma vertigem.”

No seu último livro publicado, João Lobo Antunes fala do imenso Portugal que passou pelas suas mãos, sob a forma de “gente tão variada na pronúncia, nos costumes e no temperamento”. Por cada uma destas pessoas, o neurocirurgião teve a oportunidade de ouvir a sua história pessoal e o sofrimento. Porque, como muitas vezes escreveu, “a saúde é silenciosa”, e é na dor, no medo e na desesperança que se vive a “miserável solidão da doença”.

Por isso, perante uma medicina cada vez mais “empolgada pela ciência, seduzida pela tecnologia e atordoada pela burocracia”, João Lobo Antunes elogiava a prática de se ser emocionalmente tocado pelas histórias da doença, em que a luta contra a solidão do doente nasce da empatia do médico: “A imperturbabilidade não é um dote a cultivar, mas um verniz com que nós pintamos nos primeiros anos do ofício, que o tempo, pacientemente, vai substituindo pela virtude da compaixão.”

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