30 anos de fotografia
Olhar para trinta anos de fotografia do PÚBLICO é passar em revista os acontecimentos mais marcantes destas três décadas, em Portugal e no Mundo. Mas há também o quotidiano, a realidade escondida, os rostos que escapam à espuma dos dias. Três comissários – Lara Jacinto, José Soudo e Luis Filipe Catarino – revisitaram mais de quatro mil imagens para chegar às poucas mais de 500 que compõem o livro “30 anos de Fotografia”. Aqui mostramos parte desses bastidores e 33 dessas fotografias, uma por cada fotógrafo da história do jornal.
Se uma imagem for boa, queremos guardá-la quanto tempo?
A matriz da fotografia do PÚBLICO é o espaço para os fotógrafos terem a sua própria voz
Lara Jacinto, fotógrafa e comissária do livro
Não é apenas fotografia para comprovar acontecimentos
Está ali a vida de Portugal nos últimos 30 anos
José Soudo, professor de História da Fotografia e comissário do livro
Arafat: um único fotograma
Fomos até ao Hotel Ritz em Lisboa. Eu e a Margarida Santos Lopes subimos bem alto no rápido elevador do hotel. Num grande hall, um segurança palestiniano revistou tudo o que havia para revistar - os nossos corpos, as nossas malas e até a minha máquina fotográfica. A porta da suíte abriu-se e lá dentro Yasser Arafat esperava por nós sentado num cadeirão. Decorreu talvez uma hora a nossa entrevista. No fim, Arafat levantou-se sorridente. Abraçou a Margarida e abraçou-me a mim. Depois deu dois beijos a cada um. Beijos felizes. Sorrimos e agradecemos muito. A porta abriu-se novamente. O mesmo segurança esperava que saíssemos. A Margarida saiu primeiro. Eu saí depois. E antes da porta se fechar, olhei para trás e num reflexo rápido levei a máquina fotográfica à cara e fiz esta fotografia. Um único fotograma. Uma fotografia para a capa do PÚBLICO.
Adriano Miranda
Estes 30 anos são um bom exemplo do poder do fotojornalismo em Portugal
Há uma estética e uma abordagem aos acontecimentos que é diferente. Não ter medo de estar à frente do sujeito que se está a fotografar
Luis Filipe Catarino, fotógrafo e comissário do livro
O dia em que odiei água
Com um dos mestres do jornalismo, António Arnaldo Mesquita, hoje aposentado a tratar das suas vinhas, tive a infelicidade de testemunhar umas das piores tragédias em Portugal. Dia 4 de Março de 2001, pelas 21h15. Ouvi na rádio que a ponte Hintze Ribeiro, em Entre-os-Rios, tinha colapsado. A caminho de Castelo de Paiva, numa silenciosa e angustiante viagem, soubemos que o rio engolira 59 pessoas. Um pesadelo, do qual julgo nunca ter despertado. Junto do que sobrava da ponte, no breu da noite, o Douro teimava em seguir o seu curso num silêncio aterrador. Ficámos a noite inteira acordados a olhar para aquele caudal que corria como se nada fosse
Sentíamo-nos como se procurássemos notícias de familiares. Partilhámos uma vontade hercúlea de esvaziar todo aquele rio. Com o amanhecer, a brutalidade da tragédia revelou-se: uma sensação de vazio e comoção pela ausência humana, transmitida por toda aquela amálgama fria de betão e metal incapaz de suportar pessoas. Foi um dos mais desoladores dias da minha vida profissional.
Manuel Roberto
Bairro de São João de Deus
O bairro de São João de Deus sempre foi um lugar mítico para fotografar. Lembro-me duma manhã em que recebo um telefonema, por volta das sete horas, a avisar que blocos do Bairro estavam a ser demolidos. Tinha de ir para lá. O dia tinha nascido cinzento e com uma chuva persistente. Quando lá cheguei deparei-me com um cenário digno dos filmes italianos. Na altura ainda fotografava com película e lembro-me de tentar proteger os filmes o máximo da chuva. Lembro-me duma senhora me levar a mostrar as máquinas que avançavam sobre os blocos, vi pessoas a carregar colchões na cabeça. A foto da senhora acusadora foi capa do jornal no dia seguinte.
Nelson Garrido
Se o PÚBLICO se assumiu como um projecto contemporâneo de ler o mundo, a sua fotografia mantém desde as origens a preocupação de o mostrar nas suas facetas menos óbvias, mais subliminares
Manuel Carvalho, director do PÚBLICO
Quem olha o acontecimento ou a pessoa retratada é o leitor, mas quem sugere que realidades valem ou não a pena observar é o fotógrafo
Fátima Lopes Cardoso, investigadora fotojornalismo na imprensa portuguesa
“A vida continua”
Duas horas e meia de viagem. Cheguei ao sítio combinado e conheci a Ana. Só tínhamos falado por telefone e mensagem duas ou três vezes. “Podemos fazer a fotografia ali”. Um corredor. Enquanto falávamos ia montando o cenário improvisado – dois tripés e um lençol - e o flash. Ana mudou de roupa ali mesmo e começamos a sessão. Menos de uma hora e o retrato aconteceu. Um assunto íntimo, duro e delicado. Uma série de seis retratos que acompanhou testemunhos na primeira pessoa de mulheres que tiveram cancro e o ultrapassaram. Guardo o que me disse uma delas, com um sorriso nos olhos: “Foi só um percalço...a vida continua”.
Rui Gaudêncio
Senhora da Lágrima
Quando foi fotografada, em 2003, a senhora Maria morava no Bairro do Lagarteiro, no Porto, com um irmão com quem tinha vários problemas. Era um caso fora de controlo, de pobreza extrema, com problemas de alcoolismo associados. Quando começou a chorar, eu quis captá-la, mas sem que ela fosse reconhecida. É a minha “Senhora da Lágrima”.
Paulo Pimenta
À velocidade de um click
Era um daqueles dias compridos do debate do Estado da Nação e o primeiro-ministro, José Sócrates, estava a discursar. Em termos de imagem, não havia nada de novo ali. Já tinha reparado que o ministro da Economia, Manuel Pinho, estava exaltado com o deputado do PCP, Bernardino Soares. Comecei a apontar a câmara para ele, porque pensei que poderia sair dali uma imagem diferente da habitual. Voltava ao Sócrates de vez em quando, mas, a maior parte do tempo, apontava para o ministro.
De repente, vi-o fazer um gesto muito rápido e fui verificar à máquina o que tinha sido. Quando vi o que ele tinha feito, decidi mandar a fotografia imediatamente para o jornal. O PÚBLICO colocou-a logo online. Foi extraordinário: minutos depois só se viam deputados debruçados sobre os écrãs a ver a fotografia e, num ápice, havia prints da imagem a circular na Assembleia da República. Mais ninguém tinha aquela fotografia. O que mais me impressionou foi a velocidade gigante a que tudo se processou, porque o jornalismo também mudou - as coisas não saem no dia seguinte, mas na hora. O ministro saiu por duas vezes da sala e à segunda já não regressou. No final, Sócrates anunciou que ele se tinha demitido.
Nuno Ferreira Santos
Sudeste asiático no Alentejo
Percorrendo as estradas junto à costa alentejana, a paisagem é dominada pelas estufas, um mar de plástico, como lhe chamam ambientalistas. São hectares e hectares de frutos vermelhos, saladas ou flores (em menor número). Com as estufas, a população imigrante aumentou no concelho de Odemira. As entidades oficiais têm dito que os imigrantes em freguesias como São Teotónio já correspondem a quase metade da população, a maioria do sudeste asiático, muito superior à média da população estrangeira em Portugal que não chega aos 4%.
Miguel Manso
16:04:12 10-12-2007
O tempo, o nosso tempo, contrai e expande, acelera e trava desenfreadamente, pode congelar a todo o momento. Parece que alguém já terá demonstrado cientificamente o que todos nós comprovamos no dia a dia: o tempo relativiza-se a toda a hora. Verdade que um cientista provou há mais de um século mas que o homem ao desenhar nas paredes das cavernas já intuía e foi comprovando ao longo da história. Se o relógio da máquina fotográfica não me deixa errar, foi depois das 16h00 que entrámos por brevíssimos momentos para fotografar uma sala cheia de grandes figuras da cena política mundial. Confusão imediata e absoluta. A qual é que vou primeiro? Caos total. Tudo ao molho e fé em Deus, seja ele de quem for. Entre os alvos mais apetecíveis nesse palco está o “dinossauro”/ditador Robert Mugabe, com muitos repórteres já à volta dele. O “animal político” posa para a imagem. Depois de o fotografar de frente, vamos para as costas dele. Tentar outros ângulos, outra abordagem. Arriscar.
Ao meu lado, colado a mim e eu colado a ele, reparo que está pela agência Lusa o meu amigo e colega André Kosters, que chama o ditador: “Mr Mugabe! Mr Mugabe!” Rimo-nos como dois putos escondidos por detrás da máquina. Mas resulta. Ele roda lentamente e vira-se para nós. Por sorte minha ou falta de ouvido dele, quero eu acreditar, olha para mim e não para o André. Para a minha objectiva. Para aquele pedaço de vidro circular, polido e polarizado. E participa num jogo que há muito sabe jogar. Olha fixamente. Um segundo que dura uma eternidade. Travagem total. Há momentos que duram uma eternidade e há eternidades que nos fogem numa fracção de segundo. Einstein, ainda estás por aí? Parece que afinal tinhas razão e a teoria da relatividade prova-se também na fotografia, todos os dias a cada disparo.
Daniel Rocha