A fronteira ontem e hoje: em jeito de homenagem a Adriano Moreira
A arena internacional contemporânea é cada vez mais híbrida e contraditória. Impõe-se questionar: num sistema fortemente globalizado, quão significativas são as fronteiras? Qual o papel da fronteira que aparenta adquirir hoje uma nova pertinência?
O professor Adriano Moreira ocupa um lugar singular no estabelecimento da área de Ciência Política e Relações Internacionais em Portugal, um domínio do conhecimento sem tradição autónoma na matriz do Ensino Superior antes do 25 de Abril de 1974. Tal como muitos outros que beneficiaram das suas vastas reflexões, tive o privilégio de ser seu aluno. A dissertação que tive ensejo de defender na então Universidade Técnica de Lisboa, da qual foi brilhante orientador, versou sintomaticamente sobre as especificidades da política externa da Rússia, problema que permanece central na definição do espaço europeu. Hoje, a gravíssima conjuntura, decorrente das aviltantes acções do Kremlin em território ucraniano, suscita esta nota de preito ao insigne professor a propósito da questão das fronteiras europeias.
A arena internacional contemporânea é cada vez mais híbrida e contraditória. A longa transição internacional decorrente de mudanças significativas no sistema internacional desde 1989-1991 é multidimensional e especialmente complexa, marcada por novas dinâmicas horizontais e globais, e por significativas tendências contrárias. As contradições revelam-se especialmente patentes no problema da fronteira. Impõe-se questionar: num sistema fortemente globalizado, quão significativas são as fronteiras? Qual o papel da fronteira que aparenta adquirir hoje uma nova pertinência?
Numa acepção sucinta, fronteira designa a linha limite entre duas comunidades soberanas de base territorial. A noção de fronteira condensa em si, pois, a integridade territorial como norma internacional reconhecida, sendo o uso da força considerado legítimo perante a eventual violação do território. Ora, o respeito da integridade territorial, plasmado no direito internacional, implica a fortiori a interdição de acções violentas de expansão ou de conquista com o intuito de alterar as fronteiras interestaduais.
Mas, as fronteiras de um Estado raramente correspondem aos limites dos grupos nacionais que dentro delas vivem, com os seus costumes, língua, identidade partilhada ou religião próprias, pelo que escassamente coincidem com a distribuição territorial de um único grupo homogéneo. Nos estudos sobre nacionalismo é necessário, pois, não tomar o termo nação como sinónimo de unidade jurídica territorial: a doutrina da soberania deriva tanto da idealizada nação originária como fonte do poder político, como da fórmula republicana do conjunto dos cidadãos, pelo que a sua utilização neste último sentido não exclui a existência de distintas populações étnicas ou linguísticas ou até de identidades competitivas, dentro das fronteiras de um mesmo Estado.
As fronteiras são sempre políticas, constituindo instâncias e estruturas simbólicas determinantes nas relações internacionais. É certo de que é possível distinguir fronteiras “convencionais” (ou “artificiais”) – que resultam de acordos expressos entre Estados sem atender à topografia – de fronteiras ditas “naturais”, cujos limites são de alguma forma facilitados por um obstáculo geográfico. Porém, muitas vezes o que está para lá da “realidade” da fronteira pode constituir a base comum de – ou para – entendimentos mais profundos, tais como valores humanísticos universais que se adquirem ou que transcendem do passado. Falamos da fronteira que não divide, mas que une. O conceito de fronteira enquanto ponto de intersecção das interacções internacionais revela-se, assim, algo paradoxal: tanto separa como pode pôr em relação duas ou mais entidades estaduais.
Na análise da problemática da fronteira importa referir igualmente outros factores decorrentes do reconhecimento das interdependências complexas e das dinâmicas transnacionais, e que só marginalmente são inteligíveis na óptica clássica do jogo das soberanias e do nexo territorial. A transnacionalização crescente da economia mundial, a que se somou a revolução nas telecomunicações por satélite, entre outros factores, transformou significativamente as relações internacionais.
Por sua vez, os efeitos globais da modernização, normalmente correlacionados com o crescimento das interdependências e dos processos transnacionais – no quadro do qual as cadeias globais de produção e de fornecimentos assumem relevância de primeiríssimo plano – contribuem para gerar uma descontinuidade assinalável. Com efeito, o crescimento das pulsações transnacionais e a consequente maior permeabilidade das fronteiras em resultado da forte globalização implica elevados níveis de interconectividade – o chamado factor de penetração – entre países e sociedades. No plano metodológico, tal suscita agendas de pesquisa mais alargadas – uma preocupação permanente do professor Adriano Moreira – onde se incluem não só os novos conceitos de governação às escalas global e regional, vulgo novos modos de governança, mas também as questões atinentes à metamorfose dos Estados contemporâneos, nomeadamente na mutação do modelo de soberania vertical e da correspondente fronteira territorial em sentido mais tradicional.
Por último, a integração política propriamente dita aponta para processos de relacionamento pacífico entre Estados, que normalmente compartilham uma certa contiguidade espacial ou mesmo algum sentimento de pertença. Um esquema de integração pode ser considerado uma alternativa deliberada de paz nas relações internacionais onde a probabilidade de recurso à guerra no seu seio é drasticamente reduzida ou mesmo anulada. No caso da União Europeia assume especial relevância o revolucionário Espaço Schengen, uma área composta por vinte e seis países europeus que aboliram todos os tipos de controlo de fronteira entre si, levando as políticas cooperativas de boa vizinhança a um patamar extraordinário, em gritante contraste com a viciosa agressão em curso de Moscovo à Ucrânia.