Mover o alvo depois de atirar a seta
Para John Stuart Mill, há circunstâncias em que a acção dispersa dos indivíduos pode prejudicar todos e em que fará sentido o poder estatal coordenar esforços. É Stuart Mill um perigoso socialista?
Uma das coisas que a vida nos vai ensinando é que, tipicamente, não basta fazer pedidos para que algo aconteça. Infelizmente (ou felizmente, dependendo do ponto de vista), entre o desejo e a concretização existe um caminho muito grande. Por experiência pessoal sabemos que, normalmente, esse caminho começa pela nossa própria acção.
Martim Avillez Figueiredo pediu, neste jornal, mais elevação no debate entre projectos distintos, numa resposta a Ricardo Paes Mamede. Se me junto ao pedido, afasto-me da sua prática: inadvertidamente ou não (apesar de me inclinar para a primeira, pois não tenho razões para supor o contrário), o artigo encontra-se repleto de espantalhos e falsas concepções sobre o que é a economia para a esquerda.
Martim Avillez diz que não acredita “nas virtudes de ter ministros a decidir a que empresas privadas dirigir o investimento público”. Vai ainda mais longe na defesa da ideologia liberal quando diz que “muitos liberais não abdicam de reservar ao Estado um importantíssimo papel que vai muito para além das funções de soberania. O que dizem é que não deve ser o Estado a planificar a economia”. O problema é que nem Ricardo Paes Mamede nem ninguém da esquerda defendeu algo próximo disto, excepto, talvez, uma pequena franja adepta de um qualquer Estado mais autocrático. Mas desta forma não passa de mero espantalho e uma concepção bastante errada do que a generalidade da esquerda defende.
São vários os economistas de reputação mundial que mostram que o Estado e a sociedade civil devem ter um papel-chave a determinar sectores cruciais para os quais orientar os investimentos. Mariana Mazzucato, provavelmente a ponta de lança desta concepção, diz mesmo que não se trata de escolher vencedores, mas sim de ter parceiros para concretizar objectivos públicos de bem-comum. Esta concepção resultou em inovações bastante úteis para a humanidade, para a economia e, inclusive, para gestores liberais, como foi o caso da Internet, do GPS ou do ecrã táctil.
Nada disto se aproxima sequer de algum tipo de planificação da economia nem de decisões sem critérios públicos e escrutináveis. O que parece é que Martim Avillez Figueiredo ignora a multiplicidade de caminhos intermédios entre a planificação estatal da economia e a sua liberalização total. Justiça seja feita, não parece defender a liberalização total da economia, até porque não afirma ser contra o investimento público. Parece é que esse investimento deve ser entregue sem qualquer tipo de orientação, critério ou objectivos. Em suma, injectar dinheiro público de forma indiscriminada em empresas privadas: privatizar dinheiro público. Uma ideia pouco liberal (mas muito neoliberal).
É relativamente óbvio que, se existe investimento público, este deve cumprir requisitos definidos pelo poder político — o único democraticamente eleito. Poderia citar muitos economistas de esquerda, mas acho mais relevante usar liberais como exemplo, como o Nobel da Economia Daron Acemoglu, que defende o papel de instituições virtuosas (como um Estado democrático que conduz projectos sociais e económicos) como forma de promover o crescimento.
Segundo Martim Avillez Figueiredo, “um liberal defende que é melhor muitas mãos escondidas a tentar, em simultâneo, resolver muitos desafios, do que ter apenas a mão do Estado, sozinha, a tentar solucionar todos”. Uma vez mais, um espantalho que não passa na tese… liberal. John Stuart Mill disse que existem circunstâncias em que a acção dispersa dos indivíduos pode resultar em prejuízos para todos e, para evitar isso, fará sentido o poder estatal coordenar esforços. É Stuart Mill um perigoso socialista?
Elevar a discussão é essencial. Mas isso faz-se sem espantalhos constantes para validar uma tese. Não sei se Martim Avillez Figueiredo alguma vez jogou “setas”, “dardos” ou algo similar. Tipicamente, atiram-se as setas, o melhor que se consegue, e espera-se que algumas tenham atingido o alvo. Mover o alvo depois de atirar a seta é complicado, mas resulta. Acertar assim é fácil.