No calendário anual dos salões automóveis, Bruxelas passou durante muitos anos quase despercebido, com relevância mais regional do que continental. Essa honra, na Europa, estava reservada às feiras de Paris e Frankfurt (que, entretanto, passou para Munique), que se revezam a cada ano, e, sobretudo, a Genebra, uma espécie de território neutro que atraía emblemas de todas as origens e centenas de milhares de visitantes. Até o fim do evento suíço, que também era palco da revelação do Car of the Year, ter sido decretado.
Agora, as marcas parecem ter encontrado uma nova casa na capital europeia, tendo levado a Bruxelas novos automóveis de produção e conceitos quase finalizados, além de novas ideias para o futuro da mobilidade. Os superdesportivos e os hipercarros também marcaram presença, como o Rimac Nevera R, o Lamborghini Temerario ou o saltitante BYD Yangwang U9, mas o que mais sobressaiu na capital belga foram os automóveis, mais emocionais ou racionais, para o dia-a-dia, com as propostas eléctricas a darem cartas — embora os motores térmicos se mantenham, com a indústria a dar sinal de que está pronta para qualquer coisa que a Comissão Europeia decidir, numa altura em que aumentam os rumores de que o fim dos automóveis a combustão pode ser empurrado para uma data mais à frente no calendário do que 2035 (e, sim!, já só faltam dez anos…).
O salão, que abriu portas a 10 e se mantém até domingo, 19 de Janeiro, mostrou cinco estreias mundiais, entre as quais o Alfa Romeo Junior Ibrida Q4 e Alfa Romeo Junior Veloce Q4. O Junior é o exemplo de como a lógica não tem de ser avessa à emoção. Essa, pelo menos, é a convicção de Santo Ficili, um assumido alfista (“desde muito pequeno”, diz, à conversa com os jornalistas) que assumiu o cargo de CEO da empresa no final do ano. “O Junior representa a alma da Alfa Romeo, juntando o legado que as pessoas estão habituadas da marca ao facto de ser fácil de conduzir.” Para tal, detalha, sobre uma “fantástica plataforma” foi feito um trabalho específico em termos de suspensão e direcção, de forma a dar ao Junior a tal alma alfista. Algo que pode atingir um novo patamar com as variantes de tracção integral, reveladas em Bruxelas, que, na mecânica híbrida assente num motor a gasolina sobrealimentado de 1,2 litros, junta um segundo motor eléctrico na traseira para garantir as quatro rodas motrizes. Para pitadas extra de emoção, a variante Veloce Q4 apresenta-se com 280cv.
Já com o Nº8, o primeiro 100% eléctrico da DS, a marca francesa criou um automóvel com as proporções de um sedan, sem virar as costas aos códigos estilísticos dos SUV, que permanecem entre os formatos mais apetecíveis, nomeadamente com a percepção de uma posição de condução elevada, uma bagageira generosa e uma dianteira que se destaca pela construção vertical. Tudo para que pudesse ser apresentado como o automóvel mais eficiente do grupo Stellantis. No entanto, o que pode parecer uma espécie de “revolução”, garante o director de Design da DS, Thierry Métroz, é “também uma continuidade”. E, não obstante o facto de o navio-almirante se apresentar apenas como eléctrico, a garantia é de que os motores híbridos são para manter na gama, mesmo implementando todas as mudanças aos restantes modelos.
Carros à medida
Noutros campeonatos, destaque para a estreia mundial do Microlino Spider, uma solução de mobilidade urbana inspirada no Isetta, apresentou-se a Bruxelas descapotável. A versão Spider, com uma carroçaria sem tejadilho e uma barra de protecção reforçada na traseira, tem apenas dois lugares e foi desenhado especificamente para o mercado europeu, mas isso não significa que não tenha um possível filão nos Estados Unidos, onde os carrinhos de golfe são populares para as deslocações dentro de condomínios privados. Ao salão, a Micro levou outra novidade: um configurador, que permite aos clientes criarem o seu próprio pequeno automóvel à medida.
Também em estreia estiveram o Skoda Enyaq e o Skoda Enyaq Coupé, que adoptaram a nova linguagem de estilo do emblema, designada por Modern Solid, incluindo vários elementos estreados no novo Skoda Elroq. A principal diferença pode ser vista logo na dianteira, com uma grelha Tech-Deck fina e iluminada, assim como um pára-choques renovado. Aproveitando a boleia do facelift do modelo, que determinou melhorias aerodinâmicas e esticada autonomia — atinge agora os 590 quilómetros —, a Skoda anunciou uma lista de equipamento de série mais generosa, apresentando ainda mexidas no interior do automóvel, nomeadamente o uso de novos materiais (mais amigos do ambiente, claro) e a actualização do software e tecnologias.
Por fim, o Toyota Urban Cruiser, segunda aventura puramente eléctrica de carregamento externo da Toyota (não esqueçamos o Mirai, com depósitos de hidrogénio para a geração interna de electricidade), deixou-se ver pela primeira vez. Trata-se de um SUV compacto, com um habitáculo generoso, graças a uma distância entre eixos de 2,7 metros, e funcional, a beneficiar de bancos traseiros deslizantes. Há duas opções de capacidade de bateria, tracção dianteira e integral. A versão FWD tem duas declinações de potência: 144cv, com bateria de 49 kWh, e 174cv, com bateria de 61 kWh; na versão de tracção integral, há uma bateria de 61 kWh e 184cv.
Fora da lista das estreias, mas com muito para mostrar esteve a Citroën. A viver um bom momento com o lançamento do novo C3, que tem vindo a somar encomendas, levou a Bruxelas o novo C3 Aircross, agora com sete lugares, e o novo e-C4. Porém, o que a marca francesa pôs em grande destaque foi o concept do Citroën C5 Aircross, que, disse à Fugas o CEO da Citroën, Thierry Koskas, representa cerca de 95% do automóvel de produção, previsto chegar aos mercados depois do Verão. O C5 Aircross será o primeiro Citroën a assentar na plataforma STLA Medium, que dá vida ao Peugeot 3008. E, tal como o irmão da marca do leão, graças ao facto de recorrer a uma plataforma multienergias, terá mecânicas híbridas e eléctricas.
Já a Lancia, a abrir espaço nos vários mercados europeus e com chegada prevista a Portugal no próximo ano, andou a piscar o olho aos europeus com o novo Ypsilon, não deixando de evidenciar a sua veia desportiva. À Fugas, o CEO do emblema, Luca Napolitano, já tinha confessado a sua vontade de ver a Lancia regressar ao desporto: “A oportunidade existe porque todos o querem fazer. Eu adorava fazê-lo”, admitiu por altura do relançamento europeu da Lancia, embora tenha ressalvado que tal não estava na estratégia a dez anos da marca. E, além de um magnífico exemplar do 33 Stradale, o que mais brilhou em Bruxelas foi precisamente o Ypsilon Rally4 HF, que marca o regresso aos ralis em 2025 (categoria Rally4) e que foi desenvolvido e aperfeiçoado por Miki Biasion, que se sagrou campeão do mundo de ralis com a Lancia e que compareceu à chamada no salão belga. O modelo, que tem a mesma plataforma que o Peugeot 208, está equipado com um motor turbo de 1,2 litros com 209cv, uma caixa manual de cinco velocidades, um diferencial de deslizamento limitado, podendo ser encomendado por desde 74.500 euros.
Ainda do conglomerado Stellantis, a Opel levou um revisto Mokka, enquanto a Jeep destacou a edição limitada North Face do Avenger (4806 exemplares) e o Avenger 4xe, que utiliza o mesmo grupo motopropulsor que o Alfa Romeo Junior Ibrida Q4, juntando ao pacote modos de condução específicos para areia, lama e neve. De referir que o Renegade e o Compass também têm edição especial, North Star, com exterior a verde e preto, barras de tejadilho e vidros fumados. Mas o que poderá vir a ser uma pedrada no charco são os modelos da Leapmotor, a marca chinesa que uniu esforços ao grupo Stellantis. “A cooperação entre a Stellantis e a Leapmotor tornou-nos capazes de alavancar a força de ambos os accionistas”, destacou o CEO Tianshu Xin à conversa com jornalistas portugueses, Fugas incluída.
Novidades da Ásia
A Bruxelas, além do C10, um D-SUV, e do T03, modelo urbano do segmento A, a Leapmotor apresentou a tecnologia REEV (Range Extender Electric Vehicle), aplicada ao C10. “Há um motor a gasolina de 1,5 litros, que não faz mover as rodas, mas antes carrega a bateria, que, por sua vez acciona o motor eléctrico, que entrega energia às rodas. Isso depois de esgotada a bateria, com autonomia para cerca de 145 quilómetros.” No total, o C10 REEV tem autonomia superior a 950 quilómetros e emissões de CO2 de 10 g/km. Uma solução de mobilidade que Tianshu Xin não imagina aplicada ao T03, mas que considera colmatar a falta de postos de carregamento que ainda se observa em muitos países europeus.
Também da China, destaque para o BYD Atto 2, um crossover eléctrico, focado numa utilização maioritariamente urbana. De série, chegará alimentado por uma bateria de 45,1 kWh que oferece uma autonomia oficial de cerca de 300 quilómetros (cerca de 450 se não sair da cidade), sendo que os preços poderão situar-se abaixo dos 30 mil euros. No entanto, não é de descartar uma futura versão com maior bateria.
Do vizinho Japão, a Mazda levou uma berlina executiva, a destoar (e bem!) de um mar de SUV. O Mazda 6e será proposto em duas versões, ambas de tracção traseira: a base, com autonomia para 470 quilómetros, e o 6e Long Range, com autonomia para 550. Já a Suzuki parece estar, por fim, pronta para a transição eléctrica, tendo levado a Bruxelas o novo Suzuki eVitara, que incluirá uma variante de tracção integral com capacidades para enfrentar o off-road.
Ainda da Ásia, a sul-coreana Hyundai levou novidades que foram, literalmente, do 8 ao 80: de um lado, o Inster, citadino eléctrico, com autonomia para 355 quilómetros WLTP, cujos preços deverão começar abaixo dos 25 mil euros; e o Ioniq 9, com mais de cinco metros de comprimento, seis ou sete lugares e com mecânica 100% eléctrica. Construído sobre a plataforma E-GMP, o estilo exterior é arrojado e futurista, sendo possível configurar o modelo com diferentes unidades de tracção: tudo dependerá de quanto potência se quer (de 218cv a 435cv), do pretendido nível de autonomia (com bateria de 110,3 kWh, pode chegar aos 620 quilómetros) e de quanto se está disposto a pagar.
Enquanto isso, no stand da Renault, o grande destaque era para ser o concept do vindouro Twingo, do qual já se pôde espreitar os interiores, onde se destaca um ecrã central de infoentretenimento de 10,1 polegadas e um banco traseiro deslizante, a prometer uma interessante habitabilidade. Mas as atenções acabaram por estar concentradas no R5, que conquistou o prémio de Car of the Year, dividindo a distinção com o Alpine A290, com o qual partilha toda a base técnica. Os restantes finalistas, por ordem de pontuação, eram Kia EV3, Citroën C3, Hyundai Inster, Dacia Duster, Cupra Terramar e Alfa Romeo Junior.
A Fugas visitou o Salão Automóvel de Bruxelas a convite da Stellantis