A língua que ainda está aqui

Se queremos que a língua portuguesa seja a ponte entre seus muitos milhões de falantes, precisamos pensá-la organicamente, como uma realidade plural e questionadora.

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Os artigos da equipa do PÚBLICO Brasil são escritos na variante da língua portuguesa usada no Brasil.

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Começo 2025 com a sensação de que, neste ano, tudo será melhor. Provavelmente, senti algo parecido no ano passado. Um otimismo, por vezes, até sem muita explicação para sua existência, é um bichinho alado que voa muito pelo Brasil. E ainda bem... Então, deparo-me com a conquista do Globo de Ouro pela Fernanda Torres na categoria de Melhor Atriz de drama e sorrio: “Realmente, este será um ano feliz!”. Muito do que há para ver está nos olhos de quem vê.

A alegria da conquista de um prêmio como o Globo de Ouro por uma atriz falando em português é a alegria de toda uma coletividade, para além das fronteiras de um país. Coletividade essa que tem sofrido também do mal do nós contra eles, como se não coubéssemos todos nessa casa onde se fala português. A verdade, de tão simples, é muito complexa e exige atenção e cuidado. O cuidado maior é o de não silenciar o outro.

Se queremos que a língua portuguesa seja a ponte entre seus muitos milhões de falantes, precisamos pensá-la organicamente, como uma realidade plural e questionadora. Alegrando-nos com as surpresas que ela nos provoca, como a vitória de Fernanda Torres ou o incômodo que os brasileiros sentem ao ouvir um português usando o verbo “perceber”. É o nosso olhar que deve enxergar as coisas com respeito à alteridade e à sensação de pertencimento. Não há espanto nisso.

Fui obrigado, filho de um galego que se casou com uma portuguesa que conheceu no Brasil, a sentir-me pertencendo à língua portuguesa antes de pertencer a um país específico. Aprendi a amar, com amores diferentes, ao mesmo tempo, o Brasil, Portugal e a Galícia.

Nada justifica uma ditadura. Nada justifica o silenciamento da voz de um povo. Por isso, a Eunice de Ainda Estou Aqui me tocou profundamente. Ela percebeu que dobrar-se ao sistema seria ser conivente com ele, mas não poderia sair por aí atirando a torto e a direito sem uma estratégia que considerasse o outro e seu direito de existir. Cuidar dos direitos dos povos originários era também um modo de não se calar diante do mal. Era um modo de semear o bem.

Uma amiga brasileira confessou-me seu mal-estar ao abrir a boca em Portugal e sentir-se recriminada pelo olhar e pela censura de “uma meia dúzia de três ou quatro” — como dizia um antigo professor meu —, que a encara com o despeito de quem se sente dono de algo que não lhes pertence: a língua. Um olhar ignorante e silenciador.

O Brasil erra em não dar ao ensino da língua portuguesa, particularmente ao ensino escolar, a dimensão internacional que essa nossa língua bem merece. Mas nada justifica o olhar silenciador. Não há aqui uma dicotomia, mas realidades diferentes que precisam ser solidariamente trabalhadas. Precisam ser ajustadas, para que delas não brote o mal. Solidariedade... eita palavra que está ficando tão rara!

Quando um brasileiro sorri em Lisboa diante do olhar ignorante e silenciador, mesmo sem nada falar, assim como Eunice o fez, há uma pequena vitória acontecendo enquanto esperamos novos futuros. Tenho muita esperança neste 2025. Espero também com os olhos postos, sobretudo, em mim, que ainda estou aqui, e no que posso fazer, mesmo de forma pequena, para que a língua portuguesa seja cada vez mais ponto e local de reflexão.

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