O arroz com ciência portuguesa que está a chegar ao prato
Uma nova variedade de arroz leva dez anos a desenvolver, mas os consumidores mudam de hábitos, a Europa impõe regras ambientais e o financiamento científico privilegia projectos de curto prazo.
No seu sector de investigação, Benvindo Maçãs não gosta de usar a palavra “projecto”. “Nós estamos envolvidos num programa”, diz o agrónomo, doutorado em melhoramento de plantas. “Isto é trabalho para uma vida. Quem se dedica ao melhoramento genético tem de ser paciente e saber esperar o resultado. Para desenvolver as novas variedades, num destes programas, leva-se normalmente dez a 12 anos.”
Benvindo Maçãs trabalha na Estação Nacional de Melhoramento de Plantas, em Elvas, do Instituto de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV), que participou no desenvolvimento da primeira variedade portuguesa de arroz, de tipo carolino. Baptizado Caravela, este produto já atingiu volume e entra nas próximas semanas na fase de comercialização, vendido na cadeia Continente, que pertence ao grupo Sonae, proprietário do PÚBLICO.
A instituição de Elvas existe desde a década de 40 do século passado e tem por objectivo produzir novas variedades de plantas, introduzindo alterações genéticas que facilitem a adaptação às condições do território português, além de alta produtividade e interesse económico. “No caso do melhoramento do arroz, temos a responsabilidade do programa nacional que decorre em Salvaterra de Magos, num centro de competências onde se associam produtores, industriais e universidade”, explica Benvindo Maçãs. “A mais-valia deste trabalho é a cumplicidade, pois todos lutam para que a nova variedade tenha sucesso na produção e no consumo.” Segundo o investigador, estão avançados os trabalhos de melhoramento de novas variedades, nomeadamente uma de arroz aromático que tem potencial para reduzir as importações portuguesas deste alimento.
“Conseguimos inscrever a Caravela no Catálogo Nacional de Variedades, e ela está a iniciar o processo industrial e será colocada em superfícies comerciais”, diz o investigador. “Também estamos a acelerar o melhoramento. Há uma nova metodologia, denominada speed breeding. Conseguimos fazer crescer e colher grão três vezes por ano, três gerações de arroz. Em vez de dez, 12 anos, podemos reduzir o trabalho para oito anos. As plantas crescem em ambiente controlado, mas é como um bebé que nunca saiu da incubadora. Tem de existir igualmente um processo de selecção que leve em conta o efeito da temperatura e das pragas. Tudo isto tem de ser testado e estudado no campo. O melhoramento genético possui grande componente de selecção de campo. As plantas precisam de crescer no ambiente em que vão ser submetidas a todas as influências boas e más do ambiente.”
No caso da variedade Caravela, Benvindo Maçãs sublinha que a participação dos agricultores e da indústria facilitou o processo de adopção da planta. “Esta cumplicidade ganhou-se ao longo do tempo. Fazemos todos os anos trabalhos de campo, tive muitas conversas com os associados, toda a gente estava à espera de que esta variedade chegasse. Agora, já deu os primeiros passos em larga escala, já foi muito multiplicada. É uma realidade para os agricultores, todos a conhecem.”
Ao contrário de outras plantas, que não provamos directamente (não se come cevada, bebe-se cerveja), o grão de arroz pode ser provado pelas pessoas e a qualidade do sabor está muito exposta. No caso da variedade Caravela, os testes neste domínio foram considerados muito positivos.
Recordistas no consumo de arroz
Os portugueses são recordistas europeus no consumo per capita de arroz, acima dos 16 quilos por ano. Isto é mais do que uma curiosidade. O país foi grande produtor do tipo carolino, até recentemente, quando alguns hábitos alimentares começaram a mudar. Quase todos os pratos tradicionais da gastronomia portuguesa reflectem esta preferência, ao exigirem um tipo de arroz que absorva facilmente os diferentes sabores. Outro aspecto importante é o uso elevado da água, que serve para a regulação da temperatura da planta, pelo que os 30 mil hectares de cultivo de arroz em Portugal estão concentrados em zonas onde a água é abundante: Mondego, Tejo e Sado.
Na investigação científica sobre melhoramento de arroz, existe agora pressão para desenvolver variedades de outros tipos com peso no consumo e na importação, como por exemplo agulha ou aromáticos. Neste último grupo, os trabalhos estão muito avançados e nas variedades nacionais (ainda em código e sem nome) foi possível identificar o mesmo gene que dá forte aroma ao basmati (esta designação é denominação de origem e não pode ser usada). Portugal exporta arroz carolino e importa os outros tipos mencionados. Com a criação de novas variedades nacionais será possível reduzir as importações. “Temos materiais muito avançados, em fase de entrar nos ensaios de rendimento no campo”, explica Benvindo Maçãs. O trabalho deve estar concluído em três ou quatro anos.
A produção nacional tem desafios, nomeadamente a concorrência de países que continuam a usar agroquímicos proibidos no espaço europeu, por exemplo herbicidas retirados do mercado por imposição de Bruxelas. “Isto é como ir para a guerra com uma espingarda antiga e os outros países usam a arma mais avançada”, diz o investigador. “Deixámos de ter essas ferramentas, mas elas continuam a ser usadas pelos nossos concorrentes.” Os motivos das proibições europeias não são a toxicidade dos produtos, o arroz não é afectado e não revela resíduos destes herbicidas, mas a União Europeia quer reduzir os efeitos ambientais das substâncias, nomeadamente em organismos exteriores à cultura.
No fundo, há aqui um problema de competitividade. Um produtor que use herbicidas para controlar ervas nocivas pode ter mais mil quilos de produção do que outro que não possa usar o mesmo produto, e que não irá muito além de sete toneladas por hectare, na melhor das hipóteses. A diferença permite praticar preços mais baixos e desfavorece o produtor europeu. Esta desvantagem pode ter ainda maior impacto económico quando estiver em vigor o acordo de redução de tarifas com os países da América Latina, já concluído entre União Europeia e Mercosul, que vai estimular o comércio entre os dois blocos.
A investigação científica terá um papel vital nestas questões, sobretudo se surgirem novas variedades mais adaptadas ao clima, a consumir menos água e com produções mais elevadas. No caso do arroz nacional, os trabalhos de campo decorrem na COTArroz, centro de competências de Salvaterra de Magos. Os terrenos são públicos, mas a associação é privada e funciona por quotas, juntando patrocinadores, indústria, agricultores e outros centros de investigação, incluindo os 75 hectares de arrozais, cuja produção é vendida e a receita usada como financiamento adicional da investigação.
Mudança no sector
Lourenço Palha, agrónomo, secretário-geral da COTArroz, fala em “grande mudança no sector”, com o desenvolvimento da Caravela. “Uma variedade feita em Portugal vai ter custos de produção mais baixos, por não termos de a importar, o custo de transporte também não existe. O agricultor tem sementes mais baratas e o direito que paga vai para investigação nacional. Temos uma variedade adaptada ao nosso clima, resistente a pragas e doenças, focada nos hábitos de consumo dos portugueses”, diz. Para o resto da produção, os direitos são mais elevados nas sementes, geralmente variedades compradas em Itália ou Espanha, que podem não ter a adaptação ideal às condições do território.
A dificuldade de adaptação está ligada ao método do próprio melhoramento, feito dentro da espécie. Os cruzamentos artificiais originam diferentes genótipos e os investigadores vão colhendo ao longo dos anos as plantas que revelam melhor adaptação, as que resistem a doenças, a fungos e bactérias, e as que produzem mais. Isto é repetido em cada ano, durante uma década, até serem conciliadas todas as características. Uma semente importada, além de mais dispendiosa, terá com toda a probabilidade limitações ambientais.
Não é apenas a semente que tem de se adaptar, mas todo o sector. Por motivos políticos, existe forte pressão da União Europeia para reduzir o consumo de água no arroz, explica Lourenço Palha. “A União Europeia quer que utilizemos menos adubos de origem mineral e mais adubos de origem orgânica, quer eficiências de rega cada vez maiores, emissões de gases com efeito de estufa cada vez menores. Os agricultores têm de fazer um grande esforço e, às vezes, as medidas têm de andar para trás, porque se torna impossível produzir alimentos. Uma das pressões é a redução do consumo de água no arroz. A água refresca a planta durante o dia e aquece-a à noite [protege a planta do frio], mas não é consumida, volta a ser libertada para as valas que vão dar ao rio. Uma planta de arroz acaba por consumir tanta água como uma de milho”, explica o agrónomo.
Em Salvaterra estão a ser estudadas alternativas ao alagamento dos campos, com rega gota a gota ou por aspersão. Há experiências com sementeira enterrada, entre outras técnicas. “Temos resultados, mas precisamos de passar da parte da experimentação para a de produção. Veremos como se comporta o arroz com este tipo de rega”, conclui Lourenço Palha. “Isto vai levar tempo”, reconhece, por seu lado, Benvindo Maçãs. “Os resultados têm sido promissores com outros sistemas de rega, com menos água, mas ainda estão longe.”
Ritmos diferentes
Além da pressa europeia, a paciência da investigação científica pode estar a colidir com a impaciência dos consumidores. O facto é que, nos últimos anos, houve alterações no consumo. O arroz carolino é mais difícil de cozinhar e pouco prático para gente apressada, pois não é fácil guardar para a refeição seguinte. A sua maior qualidade é sobretudo gastronómica, pois absorve com facilidade os sabores e a sua consistência é mais cremosa. A expansão no número de variedades nacionais aumentará a oferta, por enquanto limitada à Caravela, mas o processo exige tempo.
Para entrarem no Catálogo Nacional de Variedades, as plantas melhoradas precisam de qualidades idênticas ou superiores às existentes, num processo moroso que implica ensaios de campo. O catálogo é da responsabilidade da Direcção-Geral da Alimentação e Veterinária e a avaliação é feita de forma independente, usando códigos para as diferentes variedades, com descodificação só no final do trabalho.
Tudo isto é lento e de certa forma desfasado do sistema público de financiamento científico. Os projectos da Fundação para a Ciência e Tecnologia duram três anos. Os do programa Horizonte Europa, de financiamento comunitário, têm três a cinco anos. O melhoramento genético leva uma década ou, mesmo com o melhoramento acelerado em ciclos mais curtos, um período de pelo menos oito anos. “Os países têm perdido esta dimensão de médio e longo prazo”, diz Benvindo Maçãs. “Fazemos isto porque temos pequenas equipas, enfim, fazemos isto com alguma carolice.” Na opinião do investigador, são prejudicados o melhoramento genético e as carreiras dos cientistas. O sistema de financiamento parece incapaz de esperar por resultados científicos necessariamente mais lentos do que em outros sectores.