Quase dois anos depois do prazo estipulado na Lei de Bases do Clima, foram finalmente conhecidos os orçamentos de carbono para os próximos anos em Portugal, que estabelecem os limites máximos para as emissões de gases com efeito de estufa (GEE) para os períodos de 2023-2025 e 2026-2030. A consulta pública sobre a proposta de orçamentos de carbono terminou no último domingo.
O plano parece simples: cumprindo a meta da União Europeia, Portugal pretende reduzir em 55% as suas emissões de gases com efeito de estufa até 2030, por comparação a 2005. Prevê-se reduzir, por exemplo, as emissões da energia e indústria em 74%, as emissões dos transportes em 40% e as da agricultura em 11%. Dentro de cinco anos, as emissões de GEE em Portugal não devem ultrapassar as 38,6 megatoneladas de CO2eq (dióxido de carbono equivalente) por ano, sem contar com o uso do solo e florestas.
Só que o documento dos orçamentos de carbono, apresentado para cumprir as exigências da Lei de Bases do Clima, parece ser demasiado simples. Ao invés de surgir como um complemento a instrumentos como o Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC) 2030 e o Roteiro para a Neutralidade Carbónica (RNC) 2050, a proposta apresentada limita-se a reproduzir informações já conhecidas.
Margem para melhorar
“Este documento não traz nada de novo, não mostra nada de especial que vá além do PNEC”, lamenta Patrícia Fortes, especialista em modelação de sistemas energéticos do Centro de Investigação em Ambiente e Sustentabilidade (Cense) da Universidade Nova de Lisboa. Um orçamento tão simples, aliás, que a investigadora se questiona: “Qual é, afinal, o objectivo principal deste documento?”
A associação ambientalista Zero, que submeteu o seu parecer sobre a proposta do Governo, lamenta a apresentação tardia dos orçamentos de carbono (o prazo previsto na Lei de Bases do Clima era 1 de Fevereiro de 2023), que pecam pela falta de detalhe, e considera que há vários pontos em que o documento pode ser melhorado.
O documento submetido à consulta pública, produzido pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA), indica os orçamentos de carbono, esclarece a metodologia utilizada e descreve a forma de monitorização e revisão dos orçamentos de carbono. A Zero, contudo, dá nota negativa a cada um dos três pontos, pedindo melhorias na versão final que integrará contributos da consulta pública.
“A realidade não é linear”
O caminho para chegar à redução de 55% em 2030 será faseado: no período 2023 a 2025, as emissões nacionais não devem exceder as 156,8 Mt CO2eq (no total dos três anos, sem sector uso do solo, alteração do uso do solo e florestas, ou LULUCF), e no período 2026 a 2030 as emissões nacionais não devem exceder as 215,9 Mt CO2eq no total dos cinco anos (sem LULUCF).
Contudo, trocando por miúdos, a metodologia de cálculo para esta evolução baseia-se numa trajectória linear, que a associação Zero considera que “não reflecte adequadamente a realidade do processo de descarbonização”.
Para os ambientalistas, a melhor solução teria sido calcular uma curva logística (curva em S) para cada um dos sectores – aliás, preferencialmente, para cada subsector – e construir o orçamento global a partir da combinação destas curvas, que reflectem “uma descarbonização mais lenta no início, mais rápida no meio e por fim novamente mais lenta”.
A investigadora Patrícia Fortes, que fez parte da equipa que elaborou o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050, também lamenta a simplicidade do cálculo. Mesmo descontando a “grande incerteza associada” a este tipo de previsões (que tendem a ser mais conservadoras), “a realidade não acontece de forma tão linear”. Com a metodologia escolhida, a evolução em cada ano não tem sequer em conta o impacto da execução de diferentes medidas previstas no PNEC 2030, que terão pesos e velocidades diferentes ao longo dos próximos anos.
Falta de detalhe
A Lei de Bases do Clima prevê que o orçamento de carbono estabeleça os limites de emissões “fazendo uma análise prospectiva da política climática para assegurar o cumprimento daquele limite”. Apesar de a própria Comissão Europeia não exigir que os PNEC sejam desagregados à escala dos subsectores, existem vários relatórios, planos e projecções que permitiriam ir além do que consta nos orçamentos de carbono. “A verdade é que podiam ter sido mais detalhados nesta análise”, nota Patrícia Fortes.
Por exemplo, do documento não é possível inferir se as reduções de emissões nos transportes terão um peso maior dos transportes privados ou públicos, do transporte rodoviário, marítimo ou da aviação. Não há distinção entre a produção de electricidade e as indústrias pesadas. Não há também nenhuma palavra mais específica sobre o volume de licenças que cabem a Portugal nos próximos anos para as actividades sujeitas ao Comércio Europeu de Licenças e Emissão (CELE).
A Zero recorda que “cada sector engloba subsectores com naturezas e maturidades tecnológicas muito diferentes, que precisam de ser analisados separadamente”. Além disso, uma representação mais detalhada poderia contribuir para facilitar a leitura do “estado da descarbonização para as diferentes partes interessadas, incluindo os cidadãos”. É preciso evitar que “as evoluções positivas de uns possam encobrir as negativas de outros”, escreve ainda a associação.
Ainda sobre a informação aos cidadãos, outra nota curiosa: o documento indica que “a avaliação do progresso alcançado será publicada no Portal da Acção Climática” — um site também previsto na Lei de Bases do Clima que até hoje não foi lançado.
Monitorização desfasada
“É relativamente fácil estabelecer metas, o problema é cumpri-las”, sublinha Patrícia Fortes, notando que os orçamentos de pouco servem se “as medidas aplicadas são insuficientes para lá chegar”. Tendo em conta a realidade nacional, “estamos tão longe em alguns sectores que quase parece que estamos a desenhar opções que são impossíveis de acompanhar”.
A preocupação da investigadora centra-se também na falta de ferramentas para avaliar o cumprimento das metas. Um dos pontos fracos das políticas climáticas (e não só) em Portugal é a ausência crónica de monitorização e avaliação de resultados.
Este é também um dos pontos questionados pela Zero: a falta de instrumentos que permitam identificar e corrigir os desvios de forma atempada, num contexto em que estes orçamentos já vêm com praticamente dois anos de atraso.
A elaboração do Inventário Nacional de Emissões é por norma um trabalho demorado, que envolve a recolha e cruzamento de informações de várias fontes, e que actualmente leva mais de um ano a ser concluída: o inventário de 2024, publicado em Março do ano passado, tinha dados apenas até 2022.
A Zero propõe a publicação de inventários provisórios de emissões, que poderiam ser publicados “até Março de cada ano referente ao ano anterior”. Algo que a investigadora Patrícia Fortes não considera impossível, mesmo considerando que estes teriam “uma margem de incerteza significativa”. O importante, reforça, é não haver “alterações metodológicas” – ou seja, cumprir-se a metodologia da Convenção do Clima das Nações Unidas (UNFCCC, na sigla em inglês), que avalia se os países estão no caminho para cumprir o Acordo de Paris.
E o Acordo de Paris?
Por fim, a Zero coloca o dedo na ferida: “Os orçamentos estão em desconformidade com o Acordo de Paris.” A associação entende que, para cumprir a sua parte no Acordo de Paris, Portugal deveria trabalhar para reduzir as emissões de gases com efeito de estufa em 60% até 2030, em relação aos níveis de 2005. Ou seja, em vez das 38,6Mt de dióxido de carbono equivalente previstas para esse ano, as emissões do país em 2030 não deveriam ultrapassar 34,4 Mt CO2eq, defende a associação.
Patrícia Fortes recorda que as metas do Acordo de Paris — limitar o aumento da temperatura média global em até 1,5°C acima da média pré-industrial (ou, no máximo, 2°C) — são um desafio global.
Vejamos, então, como estão as metas globais: em Novembro, o Programa das Nações Unidas para o Ambiente (UNEP, na sigla em inglês) lançou um relatório onde indicava que, para não ultrapassar o limite de 1,5 graus, os países teriam de reduzir 42% das emissões anuais até 2030 (para 36,9Mt CO2eq, aplicando a Portugal) e 57% até 2035 — mas nesse caso a comparação é com o ano de 2019, quando vários países já viam os esforços da redução de emissões, e não com 2005 (um ano em que Portugal, por exemplo, teve emissões particularmente altas).
Recorde-se que um relatório do Tribunal de Contas Europeu (TCE) em Junho de 2023, antes da revisão do PNEC 2030, notava que, tendo por base o orçamento comunitário 2021-2027 e os planos nacionais de energia e clima dos Estados-membros, havia “poucos indícios de que as medidas que estão a ser postas em prática pela Comissão e pelos Estados-membros serão suficientes” para atingir a redução de 55% de emissões até 2030.