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No Jiu-Jitsu tem luta, mas também integração até para ajudar com uma vaga de trabalho
Academias lideradas por brasileiros popularizam a luta, que passou a ser vista como um elemento de harmonia, solidificando amizades e parcerias, com benefícios para o corpo e para a mente.
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“Samurai sem armadura é o primeiro a morrer na batalha”, diz Sérgio Vita, 49 anos, a um aluno que chega ao tatame de sua academia de Jiu-Jitsu ainda sem trajar quimono. Sorridente e de fala calma, Sérgio transmite uma autoridade serena no ambiente, uma das academias da Icon Jiu-Jitsu Team. Fundada por ele e outros dois sócios, a marca possui academias franqueadas em toda Europa e são estimados cerca de 2 mil alunos apenas em Portugal. O número dá uma ideia da popularização da prática da “arte suave” em terras portuguesas e de como seu crescimento está intimamente ligado ao trabalho de brasileiros.
A academia em Carcavelos, região metropolitana de Lisboa, tem um alto comparecimento de alunos, que não parecem se intimidar com os dias frios. O clima amigável entre os praticantes e professores sempre prevalece. “Aqui tem médica, estudante, engenheiro, policial, desempregado, gente de todas as nacionalidades. E é engraçado, falam que o Jiu-Jitsu é mais forte que a maçonaria. E faz sentido. Realmente, existe uma coisa muito forte entre os praticantes, uma identificação tribal”, conta Sérgio.
Esse espírito de grupo parece ser especialmente importante para os imigrantes que buscam integração social em Portugal. Rafael Cunha, 24, faixa roxa que vive há 6 anos em Portugal, já praticava Jiu-Jitsu no Rio de Janeiro. “Apesar de eu treinar há pouco tempo, quando me mudei, já era uma prioridade chegar e encontrar uma academia. Falei com amigos brasileiros, e arrumei em dois dias”, conta o frequentador da Icon. “O Jiu-Jitsu foi muito importante na minha integração. É um ambiente muito bom e saudável para fazer amizades novas”, afirma.
Sérgio Vita reforça esse aspecto como missão do Jiu Jitsu, e pontua o tatame como lugar de harmonia entre brasileiros e portugueses. “Às vezes, o cara que chega na academia está procurando trabalho. Rapidinho a gente chama no grupo e já arruma algo, conecta alguma coisa. Essa ajuda é o mais importante dentro do tatame. Os praticantes devem ter um elemento de integração social. Principalmente, para o brasileiro, que, às vezes, chega em Portugal e não conhece portugueses. Aqui, acabam conhecendo melhor a cultura e o jeito dos moradores locais”, acrescenta.
Dono da academia Mondego, em Coimbra, Rafael Silveira, 49, também é entusiasta da arte marcial como ferramenta de integração. “Imagina, o cara sai de Angola, do Brasil, não tem ninguém. Eu acho que o grande furo de planejamento da maioria dos imigrantes de qualquer nacionalidade chama-se socialização, a inserção social. Aqui na academia a gente acolhe todos”.
Estigma e popularização
Se hoje o Jiu-Jitsu é amplamente abraçado como prática esportiva e social saudável, muito se deve ao trabalho constante de brasileiros que conseguiram desconstruir a imagem de modalidade violenta e praticada por encrenqueiros na noite. “Nos primórdios do Jiu-Jitsu na Europa, alguns praticantes começaram trabalhando como seguranças. Houve vários problemas. A coisa ficou muito mal vista”, conta Silveira que, apesar de estar em Portugal desde 2017, conhece bem a má fama que os lutadores tiveram em outros tempos. “Vivi os anos de 1990 no Rio de Janeiro, quando isso explodiu de fato. Então, brinco que não fiz a história, mas eu vi a história sendo feita”, frisa.
Já Sérgio Vita, em Portugal desde 2002, foi testemunha e protagonista na transformação dessa imagem. “Comecei a trabalhar à noite, como segurança de discoteca. Trabalhei em algumas casas noturnas. E sempre com essa aparência, eu nunca fui forte. O peso até hoje é o mesmo, 76 quilos. Então, foi uma experiência enorme. Foi uma escola da vida", diz. E acrescenta: "Não é uma coisa que eu gostasse, mas pagou minhas contas. Pagou até a minha universidade. Voltei a estudar em 2007, fui para a Universidade de Porto. Em 2010, deixei de trabalhar à noite”.
A profissionalização da modalidade — impulsionada pela popularização de eventos de MMA como o UFC — a partir dos anos 2010 permitiu a Vita construir uma carreira ligada ao Jiu-Jitsu em diversas funções, de atleta a dono de academia, passando por árbitro. “Meu trabalho começou a crescer muito em toda cadeia do Jiu-Jitsu e na federação. Em 2014, comecei a trabalhar muito como árbitro e cheguei a ser diretor de regra aqui na Europa. Em 2010, eu e mais dois sócios nos juntamos e formamos a Icon. Neste período, de 2010 até 2019, houve um crescimento muito grande. Nós abrimos muitas academias, ganhamos muitos associados. Em 2020, veio a Covid-19 e deixei de trabalhar com a federação. Passei a me dedicar só à equipe e às academias”, relembra.
Também apaixonado pela arte marcial desde muito jovem, Rafael Silveira teve uma trajetória profissional menos ortodoxa. Com uma carreira consolidada na área de grandes eventos no Brasil, ele não imaginava trabalhar com Jiu-Jitsu quando emigrou para Portugal. “Trabalhei 18 anos com eventos, produção de shows. Fiz mais de 400 espetáculos. Atendi grandes clientes”, conta. “Mas aquele mundo corporativo do show business no Brasil não me preenchia. Aquilo não era eu”, assinala.
Em Portugal desde 2017, Silveira, que já dava aulas no Brasil, encontrou um mercado de lutas consolidado e pode aproveitar desse bom momento para se estabelecer profissionalmente. “Pratico arte marcial desde os 4 anos de idade. Comecei a treinar Jiu-Jitsu em março de 1995. E, quando me mudei para Portugal para trabalhar, a ideia inicial, efetivamente, não era dar aula de Jiu-Jitsu. Eu brinco que a pessoa, quando vai emigrar, tem que estar disposta a comer até caco de vidro. E eu estava nesse espírito. Mas comecei a dar aulas e a coisa aconteceu. Foi, basicamente, um grito de liberdade para mim”, ressalta.
Nada de pitboys
A percepção do público geral sobre o Jiu-Jitsu também parece ter se libertado de estigmas do passado e caminha lado a lado com o amadurecimento das práticas nas academias, assinala Vita. “Nossa função é ajudar ao máximo um indivíduo a se tornar um cara mais seguro, melhorar a capacidade física dele. E esse é o ouro invisível. Hoje, para mim, isso importa mais que medalhas. No passado, se você era recebido com dureza, então dava dureza de volta. Isso se quebrou. O paradigma hoje é outro”, assinala.
Vita recorda de histórias que viveu na juventude e que seriam inimagináveis hoje em dia. “No meu primeiro campeonato, não bati no chão para desistir numa chave de braço, e parti meu cúbito (osso do antebraço). Minha mãe ficou louca. Eu tinha 16 anos, ia fazer 17 e, na época, aquilo foi visto como ato de coragem. Hoje, vejo que isso não cabe mais. Bate, meu amigo. Não tem essa mais de pitboys”, reforça.
Rafael Silveira segue pelo mesmo pensamento em sua prática. “Essa imagem do mau lutador tem que ser desconstruída. Você viu que eu tenho livros aqui na academia? Porque a gente é uma escola, percebe? E uma escola sem livros não é uma escola. Eu brinco que a gente quer criar campeões da vida.”, enfatiza.
O legado desse trabalho tão ligado aos brasileiros parece extrapolar os limites da modalidade. “Conseguimos limpar a imagem do Jiu-Jitsu e contribuímos muito para o desenvolvimento de Portugal na prática desportiva. Há 20 anos, você corria na marginal e gritavam 'vai trabalhar!'. Hoje temos uma arte marcial inserida na sociedade portuguesa como prática pedagógica”, afirma Vita.
Família unida
O entusiasmo dos praticantes e a mudança de perfil deles são facilmente percebidos no tatame. Crianças sorridentes aprendem as primeiras técnicas em ritmo de brincadeira na academia Mondego. Gustavo Batista, doutorando em rireito pela Universidade de Coimbra, vive em Portugal desde 2018 e é pai de um desses meninos, Arthur Gael, 7. Eles dizem terem encontrado no Jiu-Jitsu a atividade ideal para passar um tempo divertido entre pai e filho.
“Procurava algum esporte para o Arthur, para que ele pudesse canalizar energias e também desse um senso de respeito e responsabilidade. E achei que o Jiu-Jitsu aliava tanto nessas questões quanto a segurança pessoal. Achei que esse seria um bom caminho, e se confirmou. Conhecemos muita gente legal”, conta Gustavo. “No Jiu-Jitsu, os mestres brasileiros dominam, então, seria muito difícil encontrar alguém que não fosse brasileiro que estivesse a ensinar em Portugal”, frisa.
Muito além de uma atividade praticada exclusivamente por brasileiros, o Jiu-Jitsu parece estar consolidado entre os locais. A portuguesa Sara Guedes, 35, é mais uma entusiasta da atividade para crianças. Ela matriculou o filho Eduardo na academia Mondego em setembro último e, desde então, só vê benefícios com a prática.
“Ele tem gostado muito, porque transforma o treino todo numa brincadeira. O treino sempre tem minicompetições em grupos e uma coisa que muitos esportes não têm, que é um bom aquecimento, os alongamentos. Depois em cada aula, eles aprendem uma técnica de defesa, e gostam. Quando chegam em casa, querem experimentar com toda a gente, o que não é muito agradável para quem fica em casa, mas é legal para eles”, diverte-se a mãe, orgulhosa.
Os mais velhos também parecem se encantar com a interação social vinda da arte suave. Nuno Chaves Ferreira, almirante da Marinha Portuguesa, pratica Jiu-Jitsu há cerca de sete anos, sempre por influência da comunidade brasileira. “Eu ia muito ao Brasil e ficava temporadas por lá. Tinha amigos e pedi para ver se eles arranjavam uma equipe para jogar futebol, porque eu pratico futsal. E eles me disseram que não jogavam futebol, mas Jiu-Jitsu, sim”, diz o faixa marrom.
“O Jiu-Jitsu Brasileiro nasceu com a família Gracie. E, de fato, a grande escola da modalidade está no Brasil e nos treinadores brasileiros. Foi a partir dessa sabedoria, desse conhecimento, que nasceu no Brasil. Eu tive a percepção muito real de que os professores brasileiros dominam a técnica de uma forma única”, completa o militar, com conhecimento de causa.
Ferreira vai além: “O Jiu-Jitsu, para mim, funciona um bocado como terapia. Quando chegamos ma academia, a cabeça está vazia e você se liberta de todos os estresses. Eu, que sou militar, consigo notar que não há soldados e não há generais. Somos todos iguais. E a relação que se estabelece no combate entre duas pessoas, só por aquilo que elas são, não é como profissão ou como conquista de vida, mas como seres humanos. Transmite-nos uma serenidade e uma tranquilidade fora de série”.