Procurar casa e ter uma deficiência: “A senhoria teve medo que explodisse a cozinha”

A discriminação no acesso à habitação e as poucas casas adaptadas são mais um entrave à vida independente. “Infelizmente, arrendar casa a uma pessoa cega ainda é considerado ser ‘mente aberta’.”

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Maria Sá: “Acontece muito no dia-a-dia as pessoas assumirem que sabem o que é melhor para nós” Catarina Póvoa
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Quando decidiu mudar de cidade e começar uma segunda licenciatura em Lisboa, Maria Sá nunca imaginou que procurar um quarto fosse tão complicado. Tudo porque os senhorios não acreditavam que, por ser cega, a jovem de 22 anos podia viver sozinha e cuidar da casa.

O percurso que Maria fez em Escolas de Referência para a Educação de Alunos Cegos e com Baixa Visão deu-lhe competências que lhe permitem ter uma vida independente e autónoma — algo em que os senhorios com quem se cruzou pareceram não acreditar.

Tentou por quatro vezes arrendar um quarto. Logo na primeira tentativa, mediada por outra pessoa, recebeu um não. O motivo: “A senhoria tem medo, porque diz que a casa não está adaptada” e Maria podia “explodir a cozinha por causa do fogão”.

Numa outra tentativa, Maria escolheu não dar conhecimento prévio ao senhorio acerca da sua deficiência. No dia da visita, a jovem não estava disponível e os pais viajaram de Viana do Castelo até Lisboa para conhecerem a casa. O pai acabou por informar o gestor de propriedades que os recebeu acerca da cegueira da filha e este garantiu que “ia falar com o senhorio, mas em princípio ficaria com o quarto”, explica Maria.

No entanto, o entusiasmo durou pouco: no dia seguinte, receberam uma chamada do senhorio, que não queria arrendar o quarto, pois “a casa não estava adaptada” e “tinha receio”, apesar de terem deixado claro que tal não seria necessário para que Maria pudesse lá viver.

Foi à quarta tentativa que encontrou casa em Lisboa, chegando ao fim “uma fase de imensa ansiedade” na sua vida. A jovem reconhece a abertura da actual senhoria, mas deixa claro que “infelizmente, hoje em dia, arrendar casa a uma pessoa cega ainda é considerado ser ‘mente aberta’”.

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Maria Sá Catarina Póvoa

“Quero uma vida autónoma e não consigo”

O problema do acesso à habitação para pessoas com deficiência agrava-se substancialmente quando estão em causa deficiências que requerem adaptações estruturais nas casas, sejam elas compradas ou arrendadas.

De acordo com os dados recolhidos nos Censos de 2021, a incapacidade de andar ou subir escadas é a mais prevalente em Portugal, afectando cerca de 6% da população com cinco anos ou mais. Das que vivem em casas familiares (e não em alojamentos colectivos, como lares ou instituições), quase 70% vivem em habitações sem acessibilidade para pessoas que utilizam cadeira de rodas de forma autónoma.

Pilar Monteiro tem paralisia cerebral, e vive com os pais e o irmão em Olhão, onde trabalha na biblioteca municipal. Tem 33 anos e usa uma cadeira de rodas desde os 18, devido a complicações decorrentes de uma operação ao apêndice.

Em Olhão, no Algarve, “não tem acesso a tratamentos” e, por isso, desloca-se todos os meses até Lisboa, cidade para onde “quer e precisa” de ir viver, de forma a reduzir o impacto e a frequência destas viagens.

“É muito complicado, porque não há casas adaptadas para cadeira de rodas”, explica Pilar, que admite já ter visitado cerca de uma dezena de habitações, quer para arrendar, quer para comprar. “Quero ter uma vida autónoma e não consigo.”

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Pilar Monteiro DR

No início de Dezembro, a Câmara Municipal de Lisboa (CML) disponibilizou 17 casas aptas para pessoas com mobilidade condicionada no âmbito do Programa de Renda Acessível da CML. O número corresponde a 10% dos fogos colocados a concurso desde a aprovação da medida, em Julho.

Rui Franco, um dos vereadores da CML responsáveis pela proposta, explica que, além da escassez de oferta no sector privado, “se tem tornado cada vez mais desigual e mais difícil para pessoas com incapacidades de mobilidade competir com equidade no acesso à habitação pública”.

Adaptações necessárias — e negadas

Quando foi morar para o apartamento onde vive há sete anos, em Portimão, Cristina Carrão usava um andarilho para se deslocar. Com o progredir da esclerose múltipla, passou a precisar de uma cadeira de rodas para se deslocar, assim como de outras adaptações nos vários espaços da casa.

Pediu ao senhorio para transformar a banheira de uma das casas de banho num chuveiro raso, mas Cristina diz que este “nunca deu muita abertura para isso, e andava sempre com desculpas”. Para poder entrar na outra casa de banho do apartamento com a cadeira de rodas, teve de retirar a porta.

Na entrada do prédio, uma elevação de 17 centímetros impede Cristina de sair e entrar no edifício de forma autónoma, sem a ajuda da sua assistente pessoal, e também de usar a sua cadeira de rodas eléctrica.

Segundo a própria, a câmara municipal não autorizou a construção de uma rampa para o passeio, alegando que a configuração da entrada permitiria a existência dessa rampa no interior do prédio. Como Cristina é inquilina e não proprietária, “não tem voto”, e o condomínio recusou-se a avançar com essa construção “porque é uma coisa que fica cara e que seria apenas usada por ela.

Há três meses, o senhorio informou-a de que não iria renovar o contrato, obrigando-a a procurar outro sítio onde viver. Além de as casas “estarem muito caras”, Cristina, 65 anos, já se deparou com situações em que apartamentos antigos foram renovados de acordo com as normas de acessibilidade estabelecidas pela lei, mas, por se encontrarem inseridos num prédio sem elevador, continuam a ser impróprios para utilizadores de cadeira de rodas ou outros dispositivos de apoio.

As casas mais antigas, normalmente mais baratas, não têm condições de acessibilidade e, no caso do arrendamento, muitas das vezes os senhorios não estão dispostos a fazer as obras necessárias.

Já as casas mais recentes, com uma maior probabilidade de cumprirem, pelo menos em certa medida, as normas de acessibilidade estipuladas pela lei, são demasiado caras para a maior parte das pessoas.

Uma vida independente

Este é “um dos grandes problemas” que as pessoas com deficiência enfrentam, segundo Diogo Martins. Tem 35 anos, e passou a maior parte deles como utilizador de uma cadeira de rodas, devido a uma distrofia muscular associada à produção de colagénio VI.

“Nem ao mínimo conseguimos aceder. Já não é uma questão de termos uma casa melhor ou pior, mas sim uma casa que tenha o mínimo de condições para podermos viver, e nem isso conseguimos”, explica.

Diogo chama ainda a atenção para a falta de apoios públicos que ofereçam soluções para pessoas com deficiência. “Para aceder a apoios como a habitação social, temos de ser pessoas extremamente pobres, no sentido em que não podemos trabalhar, não podemos ter qualquer espécie de rendimentos”, o que, para si, “leva a que se inverta o espírito da questão, pois nós, pessoas com deficiência, temos de fazer parte da sociedade, temos de participar em tudo e temos de ser activos”.

Além de trabalhar como consultor de acessibilidade da CP e num projecto europeu dedicado à mesma questão, Diogo é um dos coordenadores do Centro de Vida Independente (CVI) — uma organização sem fins lucrativos, da qual Cristina Carrão também faz parte, constituída e dirigida por pessoas com deficiência, com o objectivo de defender e divulgar a filosofia de Vida Independente.

Esta filosofia pretende colocar a pessoa com deficiência no “centro da acção, passando a ser esta a controlar a sua vida, podendo escolher com quem vive, onde vive, o que faz na vida sem que esteja condicionada a imposições externas, como a institucionalização, onde perde, quase sempre, a possibilidade de ter uma vida autónoma e decidida por si mesma”, explica o site do CVI.

E soluções?

No Porto, o programa público NiveLAr financia “obras que eliminem barreiras no interior das habitações de pessoas em cadeiras de rodas, com incapacidade de andar longas distâncias, com dificuldades sensoriais, entre outras necessidades especiais”, explica o site da Domus Social, a empresa municipal responsável pela gestão do programa.

O programa contempla uma verba de 50 mil euros, com um valor máximo de 7500 euros por beneficiário. Os interessados poderão deslocar-se à Domus Social e pedir um adiantamento de 30% para sinalizar a obra, sendo que o restante montante será pago mediante a apresentação de factura junto dos serviços municipais.

A nível nacional, o programa Acessibilidades 360º pretende melhorar as condições de acessibilidade na via pública, edifícios públicos e habitações, com uma verba de 53 milhões de euros do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Dentro deste, o programa de intervenção em habitações tem uma meta de mil casas adaptadas até Dezembro de 2025. Segundo o relatório mais recente da Comissão Nacional de Acompanhamento (CNA) do PRR, apresentado no final de Julho deste ano, das 400 obras contratadas, apenas 42 estão terminadas.

A vice-presidente da Associação Portuguesa de Deficientes (APD), Helena Rato, deixa críticas à execução do programa. Segundo o site do Instituto Nacional de Reabilitação, o valor máximo por intervenção é de 15.500,00 euros, valor que a vice-presidente da associação considera significativamente insuficiente. Fazer obras em casa é caríssimo, a construção civil está muito cara, defende, acrescentando que esta foi uma das razões por que muitas câmaras municipais não quiseram aderir.

O Governo negociou isto com Bruxelas, para depois ser gerido pelos municípios, mas os municípios não foram chamados. A APD contactou todas as câmaras do país para falar sobre este programa, e posso-lhe dizer que muitas só souberam do programa através da própria APD.

Para além de muitas das vezes as coisas não acontecerem porque não há dinheiro, quando há, são mal montadas, remata.

Texto editado por Renata Monteiro

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