Oliviero Toscani (1942-2025), o homem dos mil e um cartazes polémicos da Benetton

As campanhas publicitárias idealizadas pelo fotógrafo italiano, mais focadas em questões sociais do que em moda, escandalizaram e geraram respeito em igual medida. Toscani sofria de amiloidose.

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Oliviero Toscani esteve em Portugal em 2005 para fotografar burros mirandeses e apresentou o seu trabalho no Festival Imaginarius Nelson Garrido
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Therese Frare era estudante de jornalismo quando fotografou, a preto e branco, o jovem David Kirby deitado numa cama de hospital e às portas de uma morte precoce, provocada pela actuação no seu corpo do VIH, o vírus da sida. Na imagem, vemos a família nuclear a acompanhá-lo nos seus últimos momentos: o pai chora com a mão pousada sobre o rosto do filho, o rosto em sofrimento de alguém que parece já não estar inteiramente aqui. A fotografia de Frare foi publicada em Novembro de 1990 pela revista Life, que mais tarde a descreveria como “a foto que mudou o rosto da sida”. Dois anos depois, uma versão a cores dessa imagem era usada num anúncio para vender roupa.

Para o fotógrafo Oliviero Toscani, cérebro das controversas campanhas publicitárias nos anos 1980 e 1990 que muito contribuíram para a fama da marca italiana Benetton, o cartaz publicitário era um lugar para falar das questões verdadeiramente importantes, do mundo real, de “assuntos com os quais, por norma, os anunciantes não querem lidar”. O controverso criativo, que trabalhou para a empresa de moda entre 1982 e 2000 (e, mais tarde, entre 2017 e 2020), morreu esta segunda-feira aos 82 anos, segundo informou a sua família num comunicado. Foi num estado de saúde grave que, na sexta-feira, fora internado num hospital em Cecina perto da sua casa, na Toscana rural.

“É com grande mágoa que damos a notícia de que hoje, 13 de Janeiro de 2025, o nosso amado Oliviero embarcou na sua próxima jornada”, anunciaram a sua mulher, Kirsti, e os três filhos do casal. Toscani revelara em Agosto, numa entrevista ao jornal Corriere della Sera, que estava a sofrer de amiloidose, doença rara e incurável provocada pela acumulação de proteínas defeituosas entre as células de determinados tecidos ou órgãos, incluindo órgãos vitais. Segundo o próprio, Toscani perdera 40 quilos no período de um ano; na fotografia que o jornal italiano publicou, era visível o seu estado de saúde precário.​

Campanhas para sensibilizar

Nascido a 28 de Fevereiro de 1942, Toscani seguiu as pisadas do pai, o famoso fotógrafo italiano Fedele Toscani. Estudou em Zurique, na Suíça, e trabalhou para várias revistas de moda, tendo desempenhado um papel na afirmação de modelos como Monica Bellucci. A sua ascensão a um patamar de maior proeminência aconteceu depois de, em 1982, assumir a direcção criativa da Benetton.

A campanha publicitária que pretendia pôr o mundo a falar sobre sida foi uma de várias que gerariam grande polémica. Toscani chamou-lhe La Pietà, fazendo referência à clássica escultura homónima de Miguel Ângelo, um marco da arte renascentista, em que, após a crucificação, Maria acolhe nos seus braços o corpo morto de Jesus (“O David Kirby parece-se com Jesus Cristo, só que está a morrer com sida. [A imagem] parece um quadro”, afirmou uma vez Toscani, comentando a fotografia de Therese Frare). A Igreja Católica não apreciou aquilo que entendeu como um gesto de zombaria. Activistas que trabalhavam por uma maior consciencialização para a sida também contestaram aquilo que, na sua óptica, era a exploração da morte de um jovem seropositivo (falecido meses antes do seu 33.º aniversário, curiosamente) para vender roupa.

A família de David Kirby, no entanto, via o uso da foto numa campanha publicitária de grande escala como uma boa oportunidade para sensibilizar mais pessoas. “A Benetton não está a usar-nos, nós é que estamos a usar a Benetton”, disse o pai de David Kirby a Therese Flare, como lembrou a revista Time num artigo de 2016.

Antes da campanha publicitária em torno da sida, a Benetton já avançara, em 1989, com um cartaz em que uma mulher negra amamenta um bebé caucasiano. Essa publicidade tanto arrecadou prémios em diversos países (Áustria, Dinamarca, França, Itália, Países Baixos)​ como chegou a ser retirada de circulação nos Estados Unidos: as vozes críticas ora se mostravam chocadas com a representação da amamentação em si, ora argumentavam que a imagem remetia para os tempos da escravatura.

A Benetton regressaria ao tema do racismo em 1991, quando desvendou uma campanha incendiária em que uma criança branca, de cabelos encaracolados, surge abraçada a uma criança negra, cujo curto cabelo enrolado se levanta para formar dois pequenos chifres, e em 1996, quando espalhou pelo mundo uma imagem de três corações (de porco e não humanos, como se pensou inicialmente) com as palavras “negro”, “branco” e “amarelo” escritas, em letras garrafais, sobre cada um deles.

Do longo rol de publicidades que geraram respeito, por um lado, e boicotes à Benetton, por outro, fazem parte, também, a campanha que consistia simplesmente na fotografia de um cemitério, numa altura em que a Guerra do Golfo avançava a todo o vapor, ou o cartaz retratando um assassinato orquestrado pela máfia italiana. Ou a imagem de um padre a beijar uma freira. Ou, ainda, o retrato do uniforme ensanguentado de um soldado bósnio, morto no campo de batalha.

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Oliviero Toscani em 2008 Casilli Remo/Reuters

Oliviero Toscani deixou a Benetton em 2000, pouco tempo após a última grande polémica, desta feita gerada por uma campanha no âmbito da qual Toscani e o jornalista Ken Shulman entrevistaram e fotografaram vários reclusos encarcerados em prisões norte-americanas e condenados à morte. “Deixando de lado qualquer consideração social, política, jurídica ou moral, este projecto pretende mostrar ao público a realidade da pena de morte, para que ninguém a considere nem como um problema distante nem como uma notícia que de vez em quando aparece na televisão”, explica-se no site da Benetton.

“A publicidade tradicional diz que, se comprar um determinado produto, ficará bonita, sexualmente poderosa, bem-sucedida. Essa treta não existe verdadeiramente”, defendia Toscani. Vimo-lo em Portugal: um mês após a queda do Estado Novo, veio cá em trabalho para a revista Vogue; pouco mais de 30 anos depois, voltou para fotografar burros mirandeses como se fossem modelos. O resultado desse projecto foi exibido na quinta edição do festival Imaginarius, em Santa Maria da Feira.

O fotógrafo retomou em 2017 a sua parceria com Luciano Benetton, um dos fundadores da empresa, que regressara para tentar reavivar uma marca entretanto ultrapassada por concorrentes mais ágeis no sector da chamada moda rápida (fast fashion). Toscani voltou a sair em 2020, todavia, após tecer comentários insensíveis sobre a queda da Ponte Morandi, em Génova — um desastre que matou 43 pessoas. A empresa concessionária da auto-estrada onde a ponte estava incluída era a italiana Atlantia, que era controlada pela família Benetton. com Reuters

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