Jerry Springer: Lutas, Câmara, Acção: o que fizemos nós para merecer isto?
O Grande Desastre Americano, chamou-lhe a SIC quando importou o programa em que todos se espancavam e escandalizavam. Agora Jerry Springer é o tema de uma série documental da Netflix.
Aqueles que tinham idade para ver televisão no início deste século lembram-se de Jerry Springer (1944-2023). Se calhar não sabem é que um dos seus produtores considera que, “no fim de contas, o homicídio não prejudicou o programa”. Exacto. Leu bem. Houve um homicídio relacionado com um programa. O documentário da Netflix Jerry Springer: Lutas, Câmara, Acção, que há uma semana anda na tabela dos mais vistos, não ajuda grande coisa a perceber por que é que o programa existiu e muito menos a compreender exactamente que portas abriu — o que seria muitíssimo relevante. Nem esclarece o real papel do falecido Springer na sua persistente existência, como uma praga de baratas que tarda em extinguir-se. Mas recorda que uma mulher morreu por causa da invenção do telelixo.
Os espectadores de dezenas de países onde o alegado talk-show norte-americano era exibido, Portugal incluído, poderão recordar-se da história dos membros do Ku Klux Klan convidados para o programa, com os seus capuzes pontiagudos e patéticas intervenções, ou das mil histórias de adultério, revelações sexuais e bizarrias generalizadas que levavam invariavelmente a lutas em palco. (Escreve-se “alegado talk-show” porque, como assinala o documentário num dos raros momentos em que dá a voz a alguém com a cabeça no sítio, pouco se falava no programa.) Jerry Springer: Lutas, Câmara, Acção conta histórias menos mediatizadas fora dos Estados Unidos que dinamitam qualquer delimitação de fronteiras morais. Um programa que redundou na morte de uma mulher, outro suspenso por retratar alegremente um caso de bestialidade e ainda um outro em que irmão e irmã expõem o seu incesto e a gravidez dela.
Mas o que domina são as imagens de um público esgazeado, sedento de sangue, raramente indignado a não ser pelos motivos errados, uma espécie de Roma num Coliseu com péssimo décor e um mestre-de-cerimónias tão, mas tão leve e bonacheirão que se safou ao longo de uma carreira de 27 temporadas e de cerca de cinco mil programas com a reputação de “um tipo porreiro”. Springer morreu em 2023, aos 79 anos, e defendia-se sempre de forma inteligente: a autodepreciação. Sabia que fazia algo péssimo, mas “é só um programa de televisão”, dizia.
The Jerry Springer Show chegou a Portugal, à SIC, em 2001, com o nome O Grande Desastre Americano. Passava diariamente ao serão, com introdução de Carlos Cruz, seguindo-se a transmissão do programa na versão original, como noticiava o PÚBLICO na altura. Não há como não fazer paralelos com o que se passava então na SIC e com o próprio Jerry Springer. Este começara com um talk-show normal, que tinha até muito de Ponto de Encontro, aquele programa apresentado pelo actor Henrique Mendes e que reunia amigos ou familiares há décadas apartados. Mas não via a sua notoriedade aumentar. Portanto, o nível de picante tinha de subir. E tal como a SIC à época foi escalando o nível de “televisão em movimento”, de Big Show SIC a homens a enfrentar fobias e a gritar “ponha, ponha, ponha” perante um réptil, também Springer já tinha trilhado esse caminho.
A minissérie documental da Netflix é bastante sucinta, focada em casos como o do homem que se casou com um pónei, e nas cansativas imagens de luta livre no palco. Em dois episódios, faz o corte no episódio que redundou no homicídio de uma mulher cujo filho ainda hoje transporta as marcas do sucedido, e mostra imagens de bastidores que documentam como os produtores incitavam, enraiveciam e manipulavam as reacções que os convidados iriam ter. O seu maior mérito é mesmo ilustrar o papel do produtor Richard Dominick, que achou o episódio do pónei incrível e que era o grande mentor e motor da máquina Springer.
Daí até vermos Snooki a urinar na rua ou a ser detida na praia em Jersey Shore (MTV), ou à chegada de concursos em que mulheres em pleno trabalho de parto competem por material de puericultura (é um programa real), foi um pulinho. O documentário da Netflix aflora esse papel, mas a (escassa) sanidade que nele existe deve-se sobretudo a um crítico televisivo de Chicago, Roger Feder, uma espécie de narrador “académico”; na verdade, o pecado original da minissérie é o seu fascínio pelo telelixo que está a tentar analisar, deixando pouco espaço para mais.
A exploração das entranhas da natureza humana diz muito da evolução da televisão por cabo, do pontapé de Marco Borges no primeiro Big Brother da TVI a reality shows como Bad Girls Club, em que tudo está armadilhado para que as meninas más andem ao soco diariamente. Ver Jerry Springer: Lutas, Câmara, Acção é menos um convite à descodificação do estado a que chegou a televisão — e o mundo, porque convidar o discurso de ódio para um palco não é inofensivo e desde então só escalou — e mais uma participação no fenómeno. Ou, como escreveu Chris Bennion, o crítico do diário britânico The Telegraph, “um atoleiro moral hipnótico que nunca se tem a certeza se se deve ver”. Como o original?