Fadista Fernanda Maria morre aos 87 anos

Gravou com Alfredo Marceneiro, fez programas na Emissora Nacional e teve a sua própria casa de fados. Ouvi-la “é uma lição de fado”, diz o investigador Luís de Castro.

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Fernanda Maria com Adelino dos Santos e Júlio Gomes museu do fado
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A fadista Fernanda Maria morreu esta segunda-feira em Lisboa, aos 87 anos, disse à agência Lusa a poetisa Maria de Lourdes de Carvalho, amiga da intérprete de êxitos como Não passes com ela à minha rua ou Saudade vai-te embora.

Fernanda Maria Carvalheda Silva, de seu nome completo, nasceu em Lisboa a 6 Fevereiro de 1937, e criou "fados que perduram na memória", senhora de uma voz "límpida e segura", como afirmou o júri do Prémio Amália, que a distinguiu em 2007 com o Prémio de Carreira.

"O seu estilo interpretativo caracteriza-se pela eficácia na utilização de técnicas expressivas como o "rubato", os melismas e a mudança de estilo", segundo a Enciclopédia da Música Portuguesa no Século XX.

Fernanda Maria era "não só uma das figuras mais marcantes do século XX, como a maior, a grande herdeira dos maiores intérpretes de repertório tradicional", disse à Lusa o investigador de fado José Manuel Osório em 2006. Este investigador coordenou Fados do Fado, uma antologia de fados editada em 2011 pela discográfica Movieplay Portuguesa e na qual incluiu Fernanda Maria. Já em 2006, o investigador tinha sido responsável pela antologia da fadista que reúne 30 êxitos seus, entre 1962 e 1973, uma escolha entre os mais de 80 discos de Fernanda Maria, entre singles, EP e LP.

Entre as gravações da fadista, José Manuel Osório salientou as "magníficas interpretações" de O meu marialva, de Frederico de Brito, na melodia do Fado Triplicado, de José Marques, Aquela velhinha, de João Linhares Barbosa no Fado Cigana, de Armando Machado, e Rosa enjeitada, "uma criação de Hermínia Silva, mas que Fernanda Maria dá substância interpretativa e grande intenção nas palavras".

A obra de Fernanda Maria está ainda editada nas colecções "O Melhor de", da discográfica EMI/Valentim de Carvalho (2009), e "Estrelas da Música Portuguesa" (2015), da Ovação.

"Não sei se foi a pobre existência que tive, se foi a influência de ouvir cantar fado, que gravaram em minha alma esta forma de sentir", disse a fadista à revista Magazine em 1968.

Aos 12 anos tornou-se independente e começou a trabalhar como empregada de mesa na casa de fados A Parreirinha de Alfama, de Argentina Santos (1924-2019), onde se estreou como fadista, e mais tarde, cantou n'O Patrício, na calçada de Carriche, também em Lisboa.

Com "15 para 16 anos" apresentou-se na Emissora Nacional por insistência do cantor Alfredo Lopes. Entre 100 candidatos foi uma das escolhidas, passando a fazer parte dos quadros da emissora, apresentando-se nos programas Serão para Trabalhadores, Estrelas no Odeon, Comboio das Seis e Meia ou Passatempo PAC.

No final da década de 1950 a sua carreira ganhou maior visibilidade e em 1964 foi "atracção nacional" na revista Acerta o Passo!, levada à cena no lisboeta Teatro ABC. Foi também nesse ano que abriu a sua própria casa de fados, Lisboa à Noite, no Bairro Alto, onde passou a centrar a sua carreira, e que, segundo a Enciclopédia da Música Portuguesa, era "uma das casas de fado de referência", com um elenco que incluía, entre outros, os fadistas Manuel de Almeida (1922-1995), e António Rocha, e os músicos Francisco Carvalhinho (1918-1990) e Domingos Camarinha (1915-1993). Terá sido essa uma das razões que levaram a fadista a recusar actuações fora de Portugal, nomeadamente dos Estados Unidos, para onde gravou 20 álbuns. A única saída além-fronteiras foi uma actuação nos Países Baixos, num cartaz que incluiu o músico espanhol Paco de Lucía.

"Fadista castiça, como dizemos no meio, a Fernanda, a uma carreira internacional, terá preferido o seu retiro de fado e o convívio com fiéis admiradores", disse à Lusa o investigador de fado Luís de Castro, fundador da Associação Portuguesa dos Amigos do Fado. Luís de Castro sublinhou "a capacidade emotiva da interpretação e a intenção que colocava em cada uma das palavras que cantava".

"Indubitavelmente é uma das grandes referências do fado pela interpretação cuidada; sabe dividir os versos, tem dicção, compasso, sendo uma estilista de excepção", realçou Luís de Castro.

Para o estudioso, ouvi-la "é uma lição de fado", opinião partilhada por José Manuel Osório.

Fernanda Maria referia-se a si como "uma cantadeira de casa de fados". A fadista foi também autora de algumas letras que cantou, como A razão do meu viver, que gravou na melodia do Fado Menor, e, recentemente, o fadista Ricardo Ribeiro gravou da autoria de Fernanda Maria Prédio em ruína, numa melodia de Domingos Camarinha.

Fernanda Maria gravou com Alfredo Marceneiro (1891-1982) Bairros de Lisboa (Carlos Conde/A. Marceneiro) e A camponesa e o pescador (Henrique Rêgo/Armandinho).

Em declarações à Lusa, Maria de Lourdes de Carvalho, que escreveu para a fadista Nessa noite, a esta hora, Meu nome de lamento e Os dois impossíveis, disse que "quase tudo o que a Fernanda Maria gravou anda nas bocas do mundo".