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Mickey Mouse se tornou uma vaca
Vemos o alinhamento político incondicional dos autopropagados detentores do futuro a um dos lados da moeda e o abandono a qualquer ideal de democracia, justiça e direitos individuais ou coletivos.
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Em um vídeo de 1999, disponível no YouTube, o visionário e às vezes premonitório David Bowie realizou, em uma entrevista ao inglês Jeremy Patson, reflexões enigmáticas sobre o impacto iminente da Internet: os efeitos da rede seriam muito mais profundos do que a simples troca de conteúdos, seriam estimulantes e também aterrorizantes, e a humanidade, como se estivesse diante de uma invasão alienígena — “há vida em Marte?”, ironizou o artista — não tinha, à época, a mais pálida ideia do que estaria por vir.
Bowie morreu em janeiro de 2016 e a ideia do que estaria por vir aterrissou, enfim, entre nós. Ela vem na forma de quatorze robôs humanóides que replicam movimentos e atitudes humanas, seres fluorescentes apresentados num cenário escuro, de forma dramática, por Jensen Huang, CEO da Nvidia, num tal de CES 2025, um festival em que CEOs se imaginam Bowie e sobem ao palco para mostrar, a uma plateia maravilhada, maravilhas cibernéticas que incluem a Colher de Sal Elétrica, artefato culinário que usa corrente elétrica para... realçar o sabor do sal.
Não está claro se a Electric Salt Spoon (no original) usa, além de eletricidade, inteligência artificial, como quase todo o resto apresentado no CES 2025. Os óculos inteligentes Halliday, que analisam conversas em tempo real, certamente usam, mas não resta dúvida de que nesse campo se encontra o que estava realmente por vir.
Pois já estamos na nova era e houve tempo suficiente, desde os primórdios do ChatGPT, para que Sam Altman, o Bowie-CEO da OpenAI, mande toda a precaução e a modéstia às favas e anuncie, sempre num palco, sempre no tom entre o premonitório e o enigmático, que a evolução da Inteligência Artificial Restrita está ali, logo atrás da porta, e ela atende por Inteligência Artificial Geral.
Ou seja, se hoje nos maravilhamos com tradução simultânea, reconhecimento facial, resumo de documentos, replicação de ideias, textos e estilos alheios e criação de workflows (IA restrita), nos maravilharemos com muito mais: a “realização de qualquer tarefa intelectual que um humano pode fazer, incluindo raciocínio, resolução de problemas, criatividade e compreensão emocional” (IA geral).
Há quem enxergue, talvez munido do Halliday Smart Glasses, ainda mais maravilhas adiante, como o bilionário Chamat Palihapitya, que é apresentado como “engenheiro e democrata que se tornou apoiador de Trump”. Para Palihapitya (pronuncia-se Pá-li-ha-pi-ti-iá), a IA geral não vai apenas zerar os erros em cirurgias ou expandir os elementos da tabela periódica; ela também libertará nossas mentes, praticamente nos forçando a aprimorar nossos gostos, julgamentos e pensamento crítico.
Insights como os de Palihapitya, tidos como chocantes, são disseminados torrencialmente nas redes — e, talvez por isso, são menos chocantes do que o alinhamento político incondicional dos autopropagados detentores do futuro a um dos lados da moeda e o abandono explícito, cínico, vexaminoso e descarado a qualquer ideal de democracia, justiça e direitos individuais ou coletivos, em nome da manutenção de seu poder, riqueza, influência e estabilidade frente ao desarranjo global.
Nesse 2025, que já nasce velho (a IA da vida eterna está a caminho!), Ann Telnaes, ilustradora premiada com o Pulitzer, teve um cartum vetado pelo jornal onde trabalhava, o The Washington Post. Nele, os CEOs Mark Zuckerberg, do Facebook, Altman, da OpenAI, e o fundador da Amazon e dono do Washington Post, Jeff Bezos, oferecem sacolas de dinheiro a uma estátua num pedestal representando Donald Trump; ao lado deles, Mickey Mouse se ajoelha diante da figura imensa, numa posição que alguns confundiram como sendo a de um cadáver.
Temos de recorrer a David Bowie, o original, para tentar desvendar o que de fato está acontecendo e o que resta realmente por vir. E nos perguntarmos, como ele faz em Life on Mars?, se há alguma esperança fora da Terra, pois aqui, como diz a canção, a sucessão de divertimentos nos tortura, o policial espanca o cara errado e Mickey Mouse — a inocência — cresceu e se tornou uma vaca.