Desde os primórdios da minha infância que a Gronelândia tem um espaço especial no meu coração. Foram muitas as horas passadas no Google Earth a explorar aquele território do qual se sabia tão pouco numa época em que o volume de informação difundida era incomparavelmente inferior ao actual, muito embora já existisse Internet há uns bons anos.
Por vezes, sinto como se tivesse calcorreado aquele território dinamarquês de lés-a-lés, em especial a sua capital, Nuuk, cuja singularidade árctica me cativava de forma quase inexplicável. Ao mesmo tempo que vi aquela cidade crescer e desenvolver-se, de que a extensão da pista de aterragem do seu aeroporto recém-inaugurada é o melhor exemplo, acompanhei um pouco da caminhada política desta ilha gelada e pouco povoada em direcção ao desejo de independência fruto da vontade crescente do seu povo pela autodeterminação.
Como resultado da sua luta, o direito à sua soberania já se encontra previsto na lei de autogoverno mediante negociações entre os governos dinamarquês e gronelandês, o consentimento dos parlamentos do território e do reino, e aprovação por referendo na Gronelândia. Além disso, o território autónomo detém já uma vasta autonomia sobre um alargado conjunto de assuntos, mantendo-se apenas sob a chancela do Reino da Dinamarca a responsabilidade sobre a constituição do estado, cidadania e política monetária, de defesa e de segurança.
Contudo, comportando uma grande desilusão, creio que assistimos neste momento ao fim inglório de uma caminhada em direcção a uma primavera polar na terra que se auto-intitula como verde. Subitamente, surgiu à solta um predador de riscas vermelhas e brancas e uns apontamentos celestes que ameaça engolir tudo aquilo que lhe convier numa atitude tão putinista, cuja obsessão supremacista cai no ridículo de querer mandar na geografia ao ponto de propor uma mudança do nome do Golfo do México para Golfo da América.
Salivando o recém-eleito presidente norte-americano pela Gronelândia, será que esta pequena criança entre a sociedade das nações quererá sair da segurança da sua tutora Dinamarca para um mundo de adultos conflituosos, vis e maléficos que ameaçam o seu rapto? Sim, porque os valiosos recursos naturais que a espessa capa gelada que recobre a ilha esconderá, entre eles o petróleo, o gás e as terras raras, estas últimas tão demandas nesta era digital, também são apetecíveis a outras nações que já sabemos não serem muito respeitadoras dos valores democráticos e diplomáticos do século XXI.
Em simultâneo, terá agora a Dinamarca a coragem de abrir mão da sua soberania sobre a Gronelândia, facilmente capturável por gigantes esfomeados, quando o contexto geopolítico actual se encarreira para uma necessidade cada vez mais estratégica daquele território para a Europa do ponto de vista militar?
Agravando a situação, a base militar espacial de Pituffik, pertencente aos Estados Unidos da América, localizada no extremo noroeste da ilha, poderá comportar-se como um cavalo de Tróia no quadro de uma administração Trump com pretensões territoriais sobre esta terra gelada.
Posto isto, temo que, desta vez, o tão longo e custoso percurso até ao solstício de verão a que os gronelandeses estão votados lhes parecerá infindável. Espero, no entanto, que a resiliência Inuíte não permita a esta gente a perda do vislumbre de dias mais radiantes, da mesma forma que o estoicismo das plantas vivazes que povoam as suas terras litorais lhes permite brotar tão delicadas florinhas de esperança a cada verão.