Fogo-de-artifício não combina com ambiente. Devemos reinventar os festejos?

A entrada no Ano Novo é marcada por fogos-de-artifício por todo o mundo, mas este espectáculo tem impacto na biodiversidade. Quais são as alternativas?

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Ambiente é afectado pela poluição sonora, luminosa e de resíduos da queima de fogo-de-artifício AMANDA PEROBELLI / REUTERS
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A passagem de ano tem-se tornado sinónimo de fogo-de-artifício, para marcar festejos à escala local ou atraindo milhares de pessoas para as maiores cidades para festejar a entrada num novo ano. Mas aquele que é um momento de diversão e celebração para uns pode ser um momento de stress e perturbação para outros. Diversos estudos têm avaliado o impacto dos fogos-de-artifício na fauna e na flora e as conclusões são claras: esta forma de celebração causa uma grande perturbação tanto nos animais selvagens como nos domésticos, com impacto também na biodiversidade. Será que há alternativas?

“Os espectáculos de fogo-de-artifício são uma perturbação antropogénica que produz tanto perturbações luminosas e sonoras imediatas como poluição persistente”, lê-se num estudo da Universidade Curtin, na Austrália, publicado em 2023 na revista científica Pacific Conservation Biology. “Os fogos-de-artifício aéreos têm alturas de rebentamento típicas entre 100 e 200 metros e podem atingir 270 metros, com diâmetros de rebentamento de 100-150 metros. Já a poluição sonora pode exceder 85 decibéis – o nível a que podem ocorrer danos nos tímpanos humanos.”

Mas os impactos dos fogos-de-artifício não se devem apenas ao ruído ou à luz – é uma questão muito mais ampla, explica Joana Andrade, coordenadora do departamento de conservação da área marinha da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA). “O mais imediato é a perturbação através do ruído e a questão luminosa, mas também abrange questões de saúde pública”, alerta.

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Espectáculo de fogo-de-artifício no Funchal, na Madeira, na entrada do ano de 2024 HOMEM DE GOUVEIA / LUSA

Além das pessoas mais sensíveis, “que ficam afectadas”, há também o impacto ambiental, incluindo “a poluição causada pelos resíduos que são libertados e deixados no ambiente que acabam por contaminar os cursos de água e os solos”, descreve a coordenadora do projecto LIFE Ilhas Barreira, no Algarve. “Apesar de serem momentos especiais, temos mesmo de ponderar o custo associado a essas iniciativas e como é que as podemos substituir ou melhorar”, reforça a bióloga.

Ria Formosa desprotegida

No início do ano, o grupo municipal do PAN em Olhão denunciou a presença de resíduos na Ria Formosa após os festejos do Ano Novo, um cenário que o partido considerou “alarmante”, com “milhares de resíduos de pirotecnia espalhados por toda a área terrestre”. Na altura, o presidente da câmara de Olhão garantiu à agência Lusa que, “como todos os anos, nas 72 horas seguintes estará tudo limpo”.

Em nota de imprensa, o representante do PAN na Assembleia Municipal de Olhão, Alexandre Pereira, lamentou o tratamento dado “a um dos ecossistemas mais ricos e vulneráveis de Portugal” e considerou que “acções como estas” não podem continuar a ocorrer numa área protegida.

A Ria Formosa é uma área protegida pelo estatuto de Reserva Natural desde 1978, passando a Parque Natural em 1987, o que a torna “um local de grande sensibilidade”, sublinha Paulo Lucas, coordenador na área das florestas da associação Zero. “O ruído afecta especialmente os vertebrados, como os mamíferos. Já a poluição luminosa atinge as comunidades de insectos”, descreve o ambientalista. A queima de fogo-de-artifício nas proximidades “é uma situação pouco adequada” que, considera, é necessário rever.

Espantar os pássaros

As aves selvagens, que não antecipam estas celebrações, tendem a ficar stressadas e acabam por fugir. Tanto a poluição sonora como a luminosa causam-lhes grandes perturbações.

Nos Países Baixos, uma análise mostrou que “milhares de aves levantam voo pouco depois de serem lançados fogos-de-artifício na véspera do Ano Novo”. Outro caso foi detectado no Lago de Zurique, na Suíça, onde investigadores avaliaram que as celebrações do Ano Novo “podem causar uma queda de 26-35% do número de cisnes, gansos e patos durante a noite, números que se recuperam nos três a dez dias seguintes”.

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As aves são muito sensíveis aos fogos-de-artifício Nuno Ferreira Santos

Em Portugal, em 2023, durante os festejos do 25 de Abril com fogo-de-artifício em Castro Marim, no Algarve, a SPEA verificou um caso de fuga repentina de uma colónia de flamingos que estava a estabelecer-se na zona. “Apesar de não ser possível fazer uma ligação directa entre o impacto das celebrações e a fuga da colónia, a realidade é que este acontecimento se sucedeu após os fogos-de-artifício e sem evidência de outras perturbações”, descreve Joana Andrade.

O estudo publicado na Pacific Conservation Biology explica ainda que os fogos-de-artifício influenciam diferentes aspectos do comportamento das aves, dependendo da época do ano, em particular durante a fase de reprodução dos animais. No estado de Washington, nos EUA, os fogos-de-artifício foram banidos em zonas de reprodução de espécies ameaçadas, como é o caso dos borrelhos-de-coleira-interrompida​ (Charadrius nivosus).

Proibir? Cuidado com a questão cultural

Há ainda países onde, ano após ano, vão surgindo várias notícias sobre a morte de pássaros devido ao fogo-de-artifício. Um deles é Itália, e este ano não foi excepção: o antigo eurodeputado Andrea Zanoni, muito ligado às questões ambientais, usou a sua página no Instagram para alertar para o número elevado de animais mortos devido às celebrações da passagem de ano para 2025, mostrando duas espécies de aves que encontrou mortas no seu quintal.

O político sublinhava a necessidade de proibir os fogos-de-artifício, “apenas autorizadas em determinadas condições pelas autoridades públicas locais”. No final, quem paga a factura são “os nossos amigos com e sem penas”, escrevia Zanoni.

Para Ângela Morgado, directora-executiva da ANP/WWF Portugal, a proibição pode não ser a resposta mais correcta. “Estamos a falar de uma perspectiva cultural que está muito associada ao nosso país e as práticas ambientais não devem ir contra a cultura”. A mensagem, acredita, deve passar pela linha da responsabilidade. “Temos de fazer campanhas sobre a responsabilidade e a redução sempre que possível. As pessoas devem reduzir o seu uso ou usar fogos-de-artifício de formas muito controladas”, acrescenta.

Como mudar?

Tratando-se de uma prática tão entrelaçada com a cultura das comunidades, torna-se uma tarefa difícil explicar à população os impactos que estas celebrações podem ter na biodiversidade.

O processo de mudança, nota a bióloga Joana Andrade, “deve ser feito por fases”. É preciso, antes de mais, encontrar fóruns para falar sobre o assunto e “arranjar ferramentas para mostrar às pessoas que o objectivo é reduzir o impacto sem lhes retirar o momento de diversão e sem deixar de assinalar estas datas”. Por exemplo, pode-se “começar por restringir o uso de fogos-de-artifício tradicional em áreas protegidas e nas proximidades e incentivar a outras alternativas menos invasivas”, sugere a especialista da SPEA.

O mesmo apelo é feito a quem, a título privado, também compra fogos-de-artifício, o que acontece principalmente nas cidades. “Ainda assim, tem impactos para a biodiversidade urbana e para os animais domésticos”, conclui Joana Andrade. É crucial sensibilizar a população para o impacto que estas celebrações podem ter nos seus animais de companhia que, em casos de stress e pânico, podem fugir.

“A forma como se faz e os locais onde se faz devem ser ponderados e avaliados atempadamente”, de forma a evitar situações como a da Ria Formosa, explica ainda o coordenador na área das florestas da Zero, Paulo Lucas.

Tecnologia a nosso favor

Os fogos-de-artifício vão continuar a ser uma prática comum, mas Paulo Lucas acredita que a tecnologia poderá trazer alternativas. “Hoje em dia, com a evolução da tecnologia, temos soluções mais amigas do ambiente”, reforça Joana Andrade. Países como a China e a Índia, por exemplo, têm vindo a procurar alternativas para substituir o fogo-de-artifício devido aos níveis de poluição que assolam os países.

Apesar de os custos tenderem a ser maiores com alternativas inovadoras, Joana Andrade acredita que o resultado é mais positivo. “Dependendo das opões, estas tecnologias podem ser mais dispendiosas que o habitual fogo, mas têm a vantagem de não se esgotarem e poderem ser utilizadas noutras ocasiões e serviços.”

O Japão, por exemplo, recorreu a drones para realizar a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio em vez dos tradicionais fogos. Em 2023, o festival Sudoeste realizou o primeiro espectáculo de luzes com drones realizado num festival, com 100 drones a realizarem um voo coreografado com imagens alusivas ao festival.

Tecnologias como os drones acarretam outros problemas, como acidentes com aves ou pessoas e que podem vir a afectar a biodiversidade de outras formas. Mas as alternativas não param por aqui.

Mais silêncio, menos poluição

Este ano, Quarteira procurou uma solução menos invasiva e perturbadora para os animais: a pirotecnia silenciosa. A Câmara Municipal de Loulé publicou nas ruas redes sociais que o espectáculo iria optar por este tipo de pirotecnia, acompanhada de elementos multimédia, a pensar “nos animais e nas pessoas mais sensíveis ao ruído”.

Sendo o ruído um factor de perturbação das espécies, Joana Andrade acredita que iniciativas com a de Loulé devem ser consideradas para mitigar os impactos. “Só temos a ganhar porque reduz-se o impacto ambiental e a perturbação das espécies e as pessoas continuam a ter o espectáculo”, nota a bióloga.

“É bom que haja municípios que se preocupam com o problema e que arranjam alternativas. Este é o caminho a seguir, o exemplo que devemos dar às pessoas”, explica a especialista da SPEA. “O que seria ainda melhor era que acontecesse em todo o país.”


Texto editado por Aline Flor