Alentejo não está a adaptar-se ao aumento de calor, sugere estudo

Entre 1980 e 2015, houve 5296 mortes prematuras devido ao calor no Alentejo, adianta estudo, que mostra que óbitos cresceram naquele período. Tendência irá ampliar-se se nada for feito.

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Os refúgios climáticos podem ajudar as comunidades a suportar melhor os dias de calor no Alentejo Rui Gaudêncio
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Embora seja o frio que ainda tenha um efeito mais nefasto na saúde humana, os estudos mostram que o aumento das temperaturas, no contexto das alterações climáticas, terá um peso cada vez maior nas mortes prematuras. Uma investigação desenvolvida dentro da estratégia regional da adaptação às alterações climáticas no Alentejo revela agora que, entre 1980 e 2015, houve 5296 mortes prematuras devido ao calor, de acordo com o artigo publicado no final de Dezembro na revista científica BMC Public Health.

O impacto do calor nas mortes prematuras aumentou ao longo daquele período, o que sugere que a adaptação à evolução do clima a nível regional para proteger a população está a ser insuficiente.

“À medida que as temperaturas vão ficando mais elevadas existem medidas mais artificiais para combater esse aumento de calor que pode ser nocivo para a saúde humana”, explica ao PÚBLICO a investigadora Dora Neto, da Universidade de Évora (UE), que assina o artigo com o cientista Miguel Bastos Araújo. “Se essas medidas estiverem a ser consistentemente implementadas, podem traduzir-se na estabilização do impacto [do calor] ao longo do tempo. Nós não observámos isso na janela sazonal que analisámos”, diz.

Colapso do organismo

O excesso de calor pode pôr em risco os grupos da população mais vulneráveis como pessoas acima dos 65 anos e doentes com problemas crónicos a nível cardiovascular, pulmonar e renal, entre outros. A falta de hidratação, a insolação e dias com pequenas amplitudes térmicas, em que durante a noite o corpo não tem a oportunidade de descansar do calor que suportou no resto do dia, são factores que potenciam o colapso do organismo.

Através de informação sobre os óbitos ocorridos entre 1980 e 2015 e as temperaturas médias diárias ao longo daqueles anos, os investigadores conseguiram contabilizar as mortes prematuras associadas ao calor nas quatro sub-regiões alentejanas: Alentejo Central, Alentejo Litoral, Alto Alentejo e Baixo Alentejo.

“O que os resultados demonstram é que ao longo do período analisado, 35 anos, o número de mortes atribuíveis ao calor tem vindo a aumentar”, refere Dora Neto, que tem a cátedra da biodiversidade da UE e trabalha em temas ligados à biodiversidade, alterações climáticas e epidemiologia ambiental. Os 5296 óbitos são “à volta de 151 óbitos por ano”, diz.

Embora, estatisticamente, não haja grandes diferenças de resultados a nível das quatro regiões, a equipa conseguiu observar um maior número de mortes prematuras no Alto Alentejo. Ao mesmo tempo, para as mesmas temperaturas, o risco de morte aumenta mais no Alentejo Litoral do que nas outras regiões. “Isto é consistente com zonas historicamente mais frescas, com menor tolerância ao calor”, explica a investigadora.

Risco prolongado

O modelo estatístico usado no trabalho permitiu aos investigadores definirem curvas com uma forma em jota que revelam um aumento exponencial do risco de morte prematura com o aumento de temperatura. O valor mais baixo de mortes está associado à temperatura média diária de 19 graus Celsius – número que acaba por integrar a amplitude térmica diária. A partir daquele valor, o risco vai se tornando exponencialmente maior.

Além disso, o modelo capta os efeitos do calor ao longo do tempo. “Para extremos de temperatura, como valores médios diários de 36,6 graus, os efeitos da exposição do calor são prolongados até cinco dias. Há um risco aumentado de mortalidade durante cinco dias dada a exposição ao calor num determinado dia”, explica a investigadora.

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Nos dias quentes, há um risco acrescido para as insolações e para o corpo ficar desidratado Jon Nazca/Reuters

A pesquisa abordou uma temporada de Verão alargada que, no Alentejo, vai de Maio a Setembro, com uma divisão em duas partes, Maio-Junho e Julho-Setembro. Esta divisão permitiu concluir que também há uma falha ao se pensar os impactos do calor ao longo destes meses.

“Os dados demonstraram que não há uma adaptação das pessoas entre o período sazonal mais inicial (Maio-Junho) e o final (Julho-Setembro)”, aponta Dora Neto. Ou seja, há um impacto cada vez maior nas mortes prematuras causadas pelo calor à medida que os meses de Verão decorrem. Por isso, a investigadora questiona os diferentes patamares de temperaturas máximas que se estipularam para servir de alerta, “que são os 35 graus em Maio e Junho, e os 38 graus em Julho a Setembro”, refere.

Com tempo, o organismo humano tem capacidade para se aclimatar ao calor, suportando melhor temperaturas mais altas. Mas a investigação não viu um reflexo dessa possível adaptação no número de óbitos. “O que o nosso estudo parece sugerir é que não existem razões para ter em conta esse expectável aumento da tolerância a temperaturas mais altas com o decorrer do avanço do Verão”, diz Dora Neto. Por isso, poderá não fazer sentido esperar que as pessoas estejam mais preparadas para suportar temperaturas máximas entre os 35 e os 38 graus a partir de Julho, do que em Maio e Junho, como se definiu nos alertas.

Dois futuros diferentes?

A segunda parte do artigo olha para o futuro a partir de dois cenários climáticos (o RCP 4.5 e o 8.5) que divergem em termos de emissões de gases com efeito de estufa. O objectivo foi tentar comparar o impacto do aumento de calor nas mortes prematuras até 2100 num cenário onde as emissões de dióxido de carbono, metano e outros gases com efeito de estufa tentam ser controladas (RCP 4.5), atingindo um pico em 2040 e depois descendo, em relação a um cenário em que não há controlo dessas emissões.

No cenário RCP 8.5, estima-se que o Alentejo terá entre 140 e 180 dias por ano com temperaturas acima dos 30 graus, em vez dos 60 a 80 dias que tinha entre 1971 e 2000. Num futuro assim, os investigadores estimam que o número de mortes prematuras por calor pode mais do que quadruplicar até 2100 em relação às primeiras duas décadas deste século, passando de 3,64% para 15,88%. Por outro lado, no cenário RCP 4.5, o número de mortes não chega a duplicar, atingindo os 6,61%.

“No cenário mais moderado há uma redução significativa do número de óbitos [em relação ao pior cenário], o que coloca aqui em evidência a importância das medidas de mitigação dos gases de efeito de estufa ao longo do tempo”, afirma Dora Neto.

Em qualquer dos casos, a investigadora sublinha a importância de se apostar num conjunto de medidas para fazer face ao aumento das temperaturas. Essas acções passam pelo planeamento urbano, a construção sustentável, a eficiência energética, o isolamento térmico, mas também “o investimento em espaços frescos e refúgios climáticos”, promovendo “soluções comunitárias”, que passam também pelos espaços verdes.

Além disso, Dora Neto não esquece o factor pessoal e na importância de sensibilizar as pessoas, que estão tradicionalmente mais atentas aos impactos do frio: “Estudos como o nosso podem ajudar no sucesso de campanhas de psicoeducação, traduzindo os riscos da exposição ao calor em números de mortes prematuras. Isso pode potenciar a percepção de risco da população e ajudá-la a não subestimar os impactos do calor.”