Filha de Gisèle Pelicot diz que o pai é um “homem perigoso que devia morrer na prisão”
Caroline Pelicot descreve os momentos em que descobriu que o pai tinha drogado a mãe, Gisèle, para a violar e deixar ser violada por desconhecidos e que mantinha fotografias da filha no computador.
Passaram quatro anos desde que Caroline Darian recebeu o telefonema que mudaria a sua vida para sempre. Eram 20h25 de uma segunda-feira à noite quando a mãe, Gisèle Pelicot, lhe contou o que tinha descoberto naquela manhã: que Dominique Pelicot tinha drogado e violado a mulher durante dez anos — e que convidara dezenas de homens para casa do casal para fazer o mesmo.
"Naquele momento, perdi o que era uma vida normal", diz Darian, agora com 46 anos, numa entrevista à BBC publicada este sábado, 11 de Janeiro. "Lembro-me que gritei, chorei, até o insultei. Foi como um terramoto, um tsunami".
A 19 de Dezembro de 2024, Dominique Pelicot foi considerado culpado de todas as acusações relacionadas com a violação agravada da ex-mulher. O homem de 72 anos também foi considerado culpado pela tentativa de violação agravada de Cillia, a mulher de um dos co-arguidos, Jean Pierre Marechal; e de ter recolhido imagens íntimas e sem consentimento da filha, Caroline, e das noras, Aurore e Céline.
Dominique Pelicot e outros 50 homens estiveram em tribunal na cidade francesa de Avignon para ouvirem os veredictos sobre os crimes sexuais que cometeram contra Gisèle Pelicot e outras mulheres. A maioria dos 50 suspeitos que Dominique recrutou online para violarem a esposa afirmou ser inocente, mas o agora ex-marido de Gisèle admitiu ter violado, drogado e facilitado o abuso sexual da sua mulher. O tribunal condenou Pelicot à pena máxima de 20 anos, tempo que tinha sido pedido pelos procuradores franceses. Segundo o relato do diário francês Libération, o homem ouviu o juiz Roger Arata proferir a sentença sem demonestrar qualquer emoção.
O caso de Dominique Pelicot tornou-se no maior julgamento de violação da história francesa, depois de Gisèle ter dedicido renunciar ao direito ao anonimato e autorizar a realização dos quatro meses de audiências em público, afirmando que "a vergonha deve mudar de lado". Gisèle foi acolhida pelo mundo fora como uma heroína feminista pela coragem e recusa em sentir-se envergonhada e, inevitavelmente, a família foi atirada para o centro das atenções mediáticas — e não só.
Na entrevista à BBC, Caroline Darian recorda a altura em que, juntamente com os irmãos, seguiu para Avignon para se confrontar com o facto de o pai ser "um dos piores predadores sexuais dos últimos 20 ou 30 anos". Darian afirma mesmo que o pai é "um homem perigoso que devia morrer na prisão".
Pouco depois de chegar ao sul de França, Caroline foi chamada pela polícia e o chão voltou a fugir-lhe debaixo dos pés quando viu as duas fotografias suas que tinham sido encontradas no computador do pai. "Vivi um efeito de dissociação. Tive dificuldades em me reconhecer desde o início [nas imagens]", diz.
Carolina diz que está convencida de que o pai também a violou — algo que Dominique sempre negou, embora não tenha conseguido explicar a razão para ter fotografias da filha em roupa interior. "Eu sei que ele me drogou, provavelmente para abuso sexual. Mas não tenho nenhuma prova", diz. "E quantas vítimas estão nesta situação? Ninguém acredita nelas porque não há provas. Não são ouvidas, não são apoiadas".
Como escreve o The Guardian, com quem Caroline também conversou, a filha de Gisèle tem canalizado a raiva para uma campanha pública de aumento da consciencialização sobre a violência sexual facilitada por drogas, com medicamentos que normalmente "vêm do armário de remédios da família".
“Estou muito orgulhosa da minha mãe”, refere. “Ela abriu caminho para outras vítimas de violência sexual. Disse-lhes que não estão sozinhas. Para mim, é uma heroína. Fez tudo isto de forma brilhante. Entrou no tribunal todos os dias com centenas de jornalistas, a ser examinada por todos, a ser humilhada pelos advogados [de defesa]. Temos de ser muito fortes para fazer isto. Ela é uma mulher independente e forte."
Pouco depois de os vários crimes do pai serem conhecidos, escreveu um livro, que intitulou I'll Never Call Him Dad Again (Nunca mais lhe vou chamar pai, numa tradução livre para língua portuguesa), no qual explora o trauma da família. Num dos capítulos a que o Guardian reproduz, Caroline descreve o momento em que a polícia lhe comunicou que tinham encontrado fotografias suas no computador do pai:
Estou com medo do que estou prestes a descobrir. Um dos polícias tenta acalmar-me. 'Consegue lidar com isto', diz-me. Só preciso de olhar para duas fotografias. Tudo o que eles querem saber é se estou em alguma delas.
A primeira fotografia mostra uma jovem mulher com cabelo castanho escuro e uma franja recta deitada numa cama (...). Está a usar um pijama branco grosso e cuecas beges. Está a dormir, mas a colcha que a cobre foi levantada para expor as suas nádegas. Olho para o polícia e digo que não tenho a certeza se sou eu ou não. Ele entrega-me a segunda foto. Os lençóis parecem-me familiares, mas não tenho certeza. A pose é a mesma da imagem anterior. Não apenas similar, idêntica. Assustadoramente. É a mesma jovem e isso faz-me recuar inatamente da mesma maneira. Foi tirada num sítio diferente. A mulher está a usar uma camisola sem mangas com um estampado a preto e branco. A roupa íntima não mudou, no entanto. Peço para olhar para a primeira foto novamente. Definitivamente a mesma roupa íntima. Mas, mais uma vez, digo que não acho que seja eu.
O polícia estuda o meu rosto por um breve momento. 'Espero que não se importe que diga isto, mas não tem um sinal na bochecha direita, como a jovem nas fotos?' (...) Começo a tremer, a minha visão é perturbada por uma série de pequenas explosões estelares, os meus ouvidos começam a zumbir e afasto-me bruscamente na cadeira. (...). Como é que ele conseguiu tirar uma fotografia minha a meio da noite sem me acordar? De onde vieram as cuecas, já que tenho a certeza de que não são minha? Drogou-me? Foi além das fotos? Abusou de mim? Demoro algum tempo até conseguir olhar directamente para os polícias e admitir que sou eu nas fotografias.