Um dia dedicado aos direitos no mundo digital
O Digital Rights Festival juntou cientistas, reguladores, empresários e membros da sociedade civil numa conferência sobre economia digital, literacia digital, redes sociais e inteligência artificial
Neste arranque deste novo ano, alguns fazem resumos de 2024 e outros, previsões para 2025. Num tempo dominado pela quase omnipresença da Inteligência Artificial e da Economia Digital, o Festival dos Direitos Digitais, realizado no início de Dezembro, juntou cientistas, reguladores, empresários e membros da sociedade civil. Com que objectivo? Segundo a fundadora da iniciativa, Daniela Antão, o de ser: “uma cimeira de discurso civil para desenvolver a sociedade que desejamos.”
Pode ver todos os detalhes da edição de 2024 e acompanhar as novidades da edição de 2025 na página do Digital Rights Festival.
Esta foi a primeira edição do Digital Rights Festival, um evento organizado pela sociedade civil e endossado pela NOVA School of Law e pelo NOVA Data-Driven Law, com o apoio da ANACOM, no qual os direitos dos utilizadores, regulação dos serviços digitais e utilizações positivas dos sistemas de inteligência artificial foram alguns dos temas em discussão. Na sessão de abertura, a jurista Daniela Antão, fundadora do evento, lembrou o romance “1984”, de George Orwell, que aborda temas como a vigilância e o controlo das massas, associando-o ao Digital Rights Festival que trata precisamente destes tópicos.
Carlos Carreiras, presidente do município de Cascais, foi o primeiro a lançar o mote - “Desejo que saiam daqui todos mais empoderados.” Por sua vez, Margarida Lima Rego, directora da NOVA School of Law, deu o endosso académico ao programa. Lembrou que a faculdade subscreveu o Pacto Global das Nações Unidas dentro do seu compromisso identitário de projectar um impacto positivo na sociedade em tudo o que fazem. Endossar o Festival dos Direitos Digitais é exemplo disso mesmo, referiu.
O Regulamento dos Serviços Digitais (RSD), também conhecido como DSA (Digital Services Act), verá aprovado brevemente o seu diploma nacional de execução, a Proposta de Lei 32/XVI/1. A ANACOM será a entidade encarregada de coordenar a aplicação do RSD.
Sandra Maximiano, presidente da ANACOM - Autoridade Nacional de Comunicações, lançou as bases conceptuais dos trabalhos que se seguiram oferecendo uma apresentação sobre o que é e o que esperar da Regulação da Economia Digital, cujo resumo integral pode ver aqui. A responsável da ANACOM lembrou a audiência que este encontro é um festival que, por isso mesmo, celebra o direito a um mundo digital seguro, justo e inclusivo.
Durante a sua intervenção, fez um diagnóstico às preocupações levantadas pela Economia Digital e enunciou os pilares de uma regulação eficaz e eficiente, quer do lado da procura, quer do lado da oferta. Navegou o Regulamento dos Serviços Digitais, a pièce de résistance que lhe vai permitir regular os serviços digitais, elaborando sobre a regulação da vertente da Inteligência Artificial dos serviços digitais em temas tão críticos como o enviesamento algorítmico, a literacia digital, que é também comportamental, ou os riscos sistémicos que as grandes plataformas criam para a sociedade e a democracia.
Um dos temas mais debatidos ao longo do evento foi a regulação dos serviços digitais. Sandra Maximiano, Presidente da ANACOM - Autoridade Nacional de Comunicações, alertou para “o crescente poder de um número reduzido de plataformas de grande dimensão que potencia a criação de barreiras à entrada”, para a “falta de transparência” e de “inclusão digital”, e para as “violações de privacidade”. “Não me refiro apenas à população mais envelhecida, digitalmente excluída, mas [também] aos mais jovens e os adultos que têm uma pseudo literacia digital, que sabem tudo sobre o mundo digital e desconhecem ou ignoram os seus perigos”, disse, mencionando as questões ligadas à cibersegurança. “Muitas pessoas ainda não adoptam práticas básicas de segurança, como a utilização de passwords fortes e a actualização regular de softwares”, acrescentou, sublinhando a importância da educação e da sensibilização do público para o potencial e os riscos da inteligência artificial.
Destacando, ainda, que sem integridade de redes, serviços e dados, nem os prestadores podem prosperar, nem os direitos dos utilizadores podem ser protegidos. Portanto, a cibersegurança na Economia Digital é um ponto de passagem obrigatório.
Sandra Maximiano concluiu anunciando como planeia desenvolver um paradigma de regulação ágil e antecipatório, recorrendo a ferramentas experimentais e aprofundar um perfil institucional colaborativo na ANACOM.
Francisco Rocha dedicou a sua intervenção ao tema "Podemos ter uma democracia sem privacidade?". O fundador da Privacy Lx, que se dedica à protecção da privacidade, alertou para um mundo cada vez mais monitorizado por câmaras e dispositivos digitais deixados em ‘roda livre’. Apresentou o exemplo de câmaras instaladas nos Teslas que captaram imagens íntimas que, por sua vez, os trabalhadores da empresa divulgaram em grupos de conversas.
A regulação dos serviços digitais motivou, também, um painel de discussão que juntou João Roque Fernandes, membro da Agência de Modernização Administrativa (AMA) e Paula Meira Lourenço, presidente da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), Carlos Moreira Antunes, Legal and Policy Officer do Centro Nacional de Cibersegurança, Luís Silveira Botelho, inspector-geral da IGAC – Inspecção-Geral das Actividades Culturais e Telmo Gonçalves, membro da direcção da ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social.
Luís Alexandre Correia, director-geral Adjunto da ANACOM fez a apresentação de abertura deste painel explicando com bastante detalhe como o RSD pretende criar um mercado único para os serviços digitais, seguro, previsível e fiável; combater a disseminação de conteúdo ilegal e mitigar riscos sistémicos.
Será com a ERC que os portugueses poderão contar para, no âmbito do RSD, proteger menores e para fazer respeitar (algumas) regras de publicidade nas plataformas online (pressupondo a aprovação da Proposta de Lei 32/XVI/1). Enquanto a protecção autoral das indústrias criativas e de entretenimento, incluindo conteúdos desportivos, está cometida à Inspecção Geral das Actividades Culturais.
A Cibersegurança é omnipresente no ecossistema digital. Carlos Moreira Antunes apresentou com muita clareza o papel crítico do Centro Nacional de Cibersegurança e apelou a uma maior coordenação legislativa, organizacional e científica.
Enquanto isso, a AMA acompanha múltiplas frentes: interoperabilidade, identificação electrónica, livre fluxo de dados não pessoais, cessão de dados, ou IA.
No âmbito do debate, o vogal do Conselho de Regulação da ERC Telmo Gonçalves propôs um reforço de recursos e competências, colaboração institucional e o desenvolvimento de ferramentas de IA ao serviço do desempenho destas funções.
Paula Meira Lourenço, presidente da Comissão Nacional de Protecção de Dados, entre várias considerações de passagem obrigatória, lembrou que a CNPD tem tido uma intervenção relevante nas plataformas, sobretudo desde 2018 com a entrada em vigor do RGPD - Regulamento Geral da Protecção de Dados. Mesmo recorrendo a autoridades terceiras de outros Estados-membros, têm sido aplicadas coimas de milhões. Considera que o RSD contribui para a tutela dos dados pessoais com a previsão de um regime sancionatório reforçado. Salientou que a protecção das crianças e menores é uma prioridade que a CNPD integrou no seu Plano Estratégico Trianual, destacando que há sinais de que, neste domínio, mesmo sem o RSD, as autoridades e as plataformas procuram e encontram meios expeditos de actuar.
“Ainda é possível resgatar a Internet?”
Numa perspectiva mais centrada nos sesafios da protecção dos direitos digitais, Ricardo Lafuente, presidente da D3, a associação portuguesa dos direitos digitais, questionou o auditório sobre se “ainda é possível resgatar a Internet?”
Destacando que, a Internet de hoje é diferente da Internet de há 15 anos. Há plataformas globais de comunicação que assumiram o papel de mediadoras da nossa existência individual e social, dotadas de fortes meios de captura do poder político legislativo, gozando de hegemonia de mercado, alavancada em fortes efeitos de rede e em técnicas obscuras de manipulação. Reféns das plataformas, desenvolvem-se fenómenos de embostificação – degradação do tratamento do cliente, perante a sua passividade.
Apresentando três propostas de acção para resgatar a internet:
1. Tratar estas grandes plataformas como infra-estruturas sociais
2. Instituir interoperabilidade;
3. Desenvolver a soberania digital europeia com uma infra-estrutura pública, incluindo uma cloud europeia sob princípios de gestão multistakeholder.
Redes Sociais: imunidade ou responsabilidade?
Sendo a remoção de conteúdos ilegais do meio online tão central, Nuno Sousa e Silva, advogado, professor e investigador da Escola de Direito do Porto da Universidade Católica Portuguesa, debateu o tema «Redes Sociais: imunidade ou responsabilidade». Existem quatro formas responsabilidade dos social media pelos conteúdos que cursam nas suas plataformas ou serviços: a imunidade, pela mera transmissão, oriunda de meados de 90 do século passado; o dever de agir (removendo conteúdos ilegais), que surgiu com o advento da Internet 2.0, em que os utilizadores passam a ser também produtores de conteúdos. Em terceiro lugar, a responsabilidade civil por conteúdos que, a seu ver, enfrenta «tópicos espinhosos» (como seja saber quem é o árbitro da verdade nas fake news; qual a noção de ódio válida em ‘discurso de ódio’). Por fim, o orador apontou como caminho de futuro a responsabilização pela segurança dos produtos (ou pelo risco), restringindo o acesso de crianças e públicos vulneráveis a redes sociais, eliminando práticas enganosas, e fazendo prevalecer a liberdade individual quanto ao mais. Ficámos, ainda, a saber que no futuro vamos provavelmente navegar na Internet com a ajuda de um mordomo de IA.
A remoção de conteúdos ilegais: o papel dos Trusted Flaggers
Vesa Morina - doutoranda candidata da NOVA IMS e orientanda de Leonardo Vanneschi - apresentou as perspectivas mais inovadoras sobre a utilização e treino de algoritmos de detecção de discurso de ódio com capacidade para detectar sarcasmo e calão. A investigação de Vesa Morina debruça-se ainda sobre a demonstração do efeito do contra-discurso empático para extinguir correntes de discurso de ódio. Consciente da diversidade de definições de ódio que povoam o espaço público, a investigadora ofereceu uma proposta da Stop Hate UK que define o que se inclui na liberdade de expressão e o que pertence a um discurso de ódio, por contraposição. De acordo com os dados apresentados, duas em cada três pessoas reporta encontrar discurso de ódio online com muita ou razoável frequência; 58% considera ser mais frequente no Facebook, 30% no Tik Tok, 18% no X/Twitter, 11% no Whatsapp e 8% no Telegram.
No que concerne ao debate, contou com as participações de Margarida Santos, economista na ANACOM, Tomás Grencho, da Unidade de Cibercrime e da Linha Internet Segura da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), Paulo Sargento, presidente da Liga Portuguesa dos Direitos Humanos, José Cunha Ribeiro, da Polícia Judiciária e Miguel Crespo, director do Centro Protocolar de Formação Profissional para Jornalistas (CENJOR).
Margarida Santos destacou como o RSD vem privilegiar um diálogo directo entre as plataformas e a sociedade civil na detecção, identificação e remoção de conteúdos ilegais, que o regulamento não define, usando embora a ideia de paralelismo entre os mundos online e offline. Já quanto aos requisitos para adquirir o estatuto de sinalizador de confiança, aguardam-se orientações da Comissão. A economista considera que o RSD cria uma oportunidade importante para investigadores certificados, que poderão aceder a dados das plataformas fazendo publicar as grandes conclusões dos seus estudos.
Miguel Crespo estudioso da desinformação e membro de várias entidades internacionais do jornalismo exaltou os riscos reais, em certos países da UE, de instrumentalização política da ‘certificação de certificadores’. Deixou ainda um apontamento conceptual básico nesta matéria: é preciso distinguir factos de verdades; e crenças de opiniões.
Por seu lado, Tomás Grencho falou sobre a vasta experiência da APAV como membro do consórcio Centro Internet Segura - Linha Segura, que apoia vítimas de crimes cibernéticos com uma linha de apoio helpline (que presta apoio a vítimas de cibercrime esclarecendo e posteriormente referenciando uma situação às plataformas para protecção da vítima) e hotline (que é um serviço de identificação e denúncia de conteúdos ilegais, como abusos sexuais de menores a circular na Internet, incitamento à violência e ao racismo, ou incitamento à radicalização e ao terrorismo). Conta, naturalmente, com uma colaboração estreita com a Polícia Judiciária.
Enquanto, José Cunha Ribeiro notou que as áreas do terrorismo e da criminalidade sexual têm canais dedicados; mas que em todas as outras os sinalizadores de confiança poderão colmatar as necessidades de actuação trazendo mais celeridade e eficiência. A criminalidade cibernética é muito volumosa, constante, de escopo internacional, e munida de IA.
Para finalizar, Paulo Sargento trouxe pela primeira vez para a sinalização de conteúdos ilegais online a centenária Liga Portuguesa dos Direitos Humanos – Civitas, podendo ser um dos novos atores nesta missão, aportando o seu contributo para expandir no espaço digital o respeito da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
O que é a Inteligência Artificial?
Este foi o mote da aula aberta, para leigos, do investigador e professor catedrático da NOVA IMS Leonardo Vanneschi, entre os 2% dos melhores cientistas do mundo, que destacou que a IA (Inteligência Artificial) é uma área da ciência da computação. A ciência da computação é o campo que estuda o cálculo automático (ou computação).
Explicou que o passo fundamental é manual ou intelectual: o desenvolvimento de uma estratégia para resolver um problema. Essa estratégia é chamada de algoritmo. De forma um pouco mais precisa, e sem entrar em detalhes técnicos, um algoritmo é uma sequência de passos muito precisos e sem ambiguidades. Executar toda a sequência de passos conduz à solução do problema. Finalmente, o algoritmo precisa ser traduzido num programa.
A parte criativa está no primeiro passo: o desenvolvimento dos passos da estratégia. Um passo fundamental é realizado por um ser humano: o desenvolvimento mental da estratégia — pensar, imaginar e conceber a estratégia para resolver o problema (o algoritmo). Isto é frequentemente chamado de método computacional tradicional.
Destacou, no entanto, que existem problemas para os quais é impossível ou extremamente difícil imaginar um algoritmo num período de tempo humanamente viável. Estes problemas, frequentemente designados problemas complexos, estão a tornar-se cada vez mais frequentes, e as suas soluções cada vez mais úteis. Neste contexto, o método computacional tradicional falha.
Assim, a IA é composta por um conjunto de métodos computacionais concebidos para resolver (ou pelo menos aproximar soluções para) problemas complexos.
Muitas das estratégias da IA são inspiradas na biologia, como Redes Neuronais, Computação Evolutiva, Inteligência de Enxame (Swarm Intelligence) e Sistemas Fuzzy. Existem dois cenários típicos no uso da IA:
1. Modelação Preditiva: quando pretendemos prever algo com base em dados existentes.
2. Modelação Descritiva: quando queremos compreender padrões ou estruturas nos dados.
O AI ACT e os sistemas de elevado risco
Caminhando para o final do evento, Luís Barreto Xavier, professor da Faculdade de Direito de Lisboa da Universidade Católica Portuguesa dedicou a sua intervenção ao tema "Regulamentação da Inteligência Artificial e Sistemas de Risco Elevado". Como explicou, o AI Act (Regulamento 2024/1689), aplicável a partir de Fevereiro de 2025 e progressivamente até 2027, visa regular transversalmente a inteligência artificial (IA) com base no risco associado aos seus usos. Não regula tecnologias específicas, mas as suas aplicações, classificando-as em diferentes níveis de risco: usos proibidos (riscos significativos para segurança, saúde ou direitos fundamentais); riscos elevados (maior foco do regulamento, com requisitos específicos); riscos limitados (obrigações de transparência); e ainda modelos de finalidade geral não enquadráveis objectivamente em níveis de risco específicos - IA generativa.
Em relação a sistemas de risco elevado, o regulamento impõe 8 requisitos (Artigos 8.º a 15.º) e 11 obrigações ao longo do ciclo de vida dos sistemas (Artigos 16.º e seguintes), abrangendo gestão de riscos, supervisão humana, transparência e cibersegurança.
Os utilizadores terão direito de apresentar queixa (Artigo 85.º) e de obter explicações sobre decisões individuais envolvendo IA (Artigo 86.º). O regime sancionatório será mais brando para PMEs e startups. Embora não incluída no AI Act, prevê-se que os sistemas de IA venham a estar sujeitos ao regime da responsabilidade por produtos defeituosos.
Personalização de preços e os seus desafios
A última apresentação do dia foi da responsabilidade do professor da NOVA School of Law Fabrizio Esposito, que explicou que os preços personalizados estão na moda. Significa que alguém poder pagar mais que os outros com base no conhecimento que o vendedor tem dos perfis desse cliente, sem que ele saiba. Na China esta prática é proibida (a chamada ‘facada nas costas’). Na Europa a doutrina maioritária considera que basta exigir a comunicação "o preço é baseado no seu perfil digital". Fabrizio Esposito demonstrou que essa solução é inaceitável e propõe um modelo em que o consumidor conhece o próprio preço impessoal e que, quando este é mais baixo, tem a possibilidade de concordar ou não consoante os critérios (meritórios?) subjacentes à personalização.
Depois de um dia de muito debate e partilha de conhecimento, o evento foi denominado pelos participantes como uma iniciativa de muito "sucesso", referindo que esta primeira edição do festival pode significar um ponto de partida para uma discussão mais profícua sobre a temática dos direitos digitais.
Veja todos os detalhes da edição de 2024 e acompanhe as novidades para a edição de 2025 em www.digitalrightsfestival.com