O comércio de animais selvagens “é alarmante”, revelam dados dos Estados Unidos
Estudo científico revela “magnitude” do comércio da vida selvagem: os EUA transaccionaram legalmente 2,8 mil milhões de seres vivos em 22 anos. Mercado constitui uma ameaça à biodiversidade na Terra.
Uma análise ao maior banco de dados sobre o comércio de seres vivos selvagens, mantido pelos Estados Unidos, revelou que o país comercializou mais de 30 mil espécies ao longo de 22 anos, totalizando mais de 2,85 mil milhões de indivíduos transaccionados legalmente. O estudo científico, publicado esta terça-feira, mostra como este mercado constitui uma ameaça “alarmante” à biodiversidade na Terra.
“Os números que tínhamos até agora estavam muito subavaliados. Estamos surpresos pela magnitude do que está a ser exportado e importado nos EUA em termos de vida selvagem, sobretudo animais”, afirma ao PÚBLICO o biólogo português Pedro Cardoso, co-autor do estudo publicado esta terça-feira na revista PNAS e defensor de regras mais apertadas para este tipo de mercado na União Europeia.
O investigador do Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais (CE3C) da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa explica que, apesar de algumas espécies em risco serem monitorizadas pela CITES – a Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e Flora Selvagens Ameaçadas de Extinção –, a maior fatia das transacções comerciais escapa ao controlo dos países. Os EUA constituem uma excepção nessa matéria, uma vez que documentam oficialmente as entradas e saídas de seres vivos.
“A maioria da vida selvagem comercializada é transaccionada legalmente”, lê-se no estudo publicado na PNAS. “No entanto, para a maioria das espécies, não existem dados sobre o seu comércio, o que significa que apenas podemos estimar quantas espécies são comercializadas. Os Estados Unidos são um dos maiores importadores de vida selvagem do mundo e o único país que recolhe e divulga dados abrangentes sobre o comércio de vida selvagem.”
Falta um banco de dados europeu
O novo artigo concentra-se no caso norte-americano precisamente porque é o único capaz que oferece um banco de dados relevante e actualizado. Ao contrário dos EUA, a União Europeia não dispõe de um repositório capaz de agregar informação sobre o comércio de todas as espécies selvagens, seja ele lícito ou ilegal.
Pedro Cardoso reivindica a criação de uma ferramenta semelhante na Europa, por forma a rastrear, desde a origem, a circulação internacional de animais, plantas e fungos. O investigador refere que o único sistema existente no continente é o Traces, que se ocupa de questões de segurança alimentar – focando-se, portanto, em grupos selectos de animais.
“Consideramos essencial ter esta informação na União Europeia para saber as espécies que são importadas e exportadas e, assim, podermos influenciar as políticas de conservação, seja a nível nacional ou europeu”, afirma Pedro Cardoso.
O investigador recorda ainda que, embora muitos vertebrados estejam abrangidos pela CITES, os invertebrados constituem um grupo que “muitas vezes passa completamente ao lado do controlo”. É o caso de seres vivos como esponjas, caracóis, corais e aranhas, por exemplo. “Não fazemos a mínima ideia do que sai, quais são as consequências e até que ponto a União Europeia é um motor para a extinção destas espécies. Isto deve-se ao simples facto de não termos qualquer tipo de regulamentação”, lamenta.
A CITES é uma convenção, criada há meio século, que serve de instrumento internacional para o combate ao comércio ilegal da vida selvagem, abrangendo cerca de 41 mil espécies vulneráveis.
O sistema norte-americano
Liderado por Alice Hughes, professora da Universidade de Hong Kong, o estudo publicado na PNAS analisou dados armazenados entre 2000 e 2022 no LEMIS, o sistema utilizado pelo Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos EUA (Fish & Wildlife Service, na designação em inglês). Mais de metade dos 2,85 mil milhões de seres vivos comercializados nesse período corresponde a animais capturados directamente na natureza.
Os autores consideram este dado “alarmante”, refere uma nota de imprensa, uma vez que, para a maioria das 29.445 espécies consideradas, “nunca foi avaliado o impacto do comércio nas populações” respectivas. E, nas situações em que foram realizadas avaliações, constatou-se que “as populações sujeitas à recolha apresentaram declínios significativos”.
O novo artigo contou com a participação de dois cientistas lusófonos. Além de Pedro Cardoso, do Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais (CE3C), fez parte da equipa a investigadora brasileira Caroline S. Fukushima, colaboradora externa do CE3C e afiliada à Universidade de Turku, na Finlândia.
Expectativas para a COP16
Este estudo da PNAS é publicado semanas antes segunda parte da Cimeira da Biodiversidade das Nações Unidas (COP16), numa tentativa de resolver os assuntos que ficaram pendentes nas negociações que começaram na cidade colombiana de Cali, em Novembro de 2024. A primeira sessão foi suspensa sem qualquer decisão sobre o financiamento e a monitorização das metas de conservação.
Os cientistas esperam que o estudo “inspire outros países a reverem a forma como registam e partilham os seus dados” relativos à compra e venda de animais, plantas e fungos recolhidos na natureza, refere o comunicado. Sem “dados comparáveis”, argumentam, “é impossível avaliar o impacto do comércio sobre a maioria das espécies envolvidas”.
“Sabemos que a COP16 não trará nenhuma decisão sobre esta questão do comércio global da vida selvagem, mas temos esperança que o tema pelo menos possa ser colocado em cima da mesa”, conclui Pedro Cardoso.
Pedro Cardoso já havia publicado em 2024 na prestigiada revista Science, juntamente com outros 11 investigadores, um artigo que reivindicava regras mais apertadas para o comércio da vida selvagem na União Europeia.