A ciência em defesa do porco alentejano
Projectos de investigação no interior do país procuram soluções para o melhoramento genético do porco alentejano e desenvolvem técnicas para evitar fraudes com os seus produtos altamente valorizados.
O porco de raça alentejana tem crescente importância económica e a ciência está a estudar a forma de preservar as suas características únicas. Este animal contribui para a biodiversidade e conservação de um ecossistema, o montado, que trava a desertificação do Sul do país. Nesta paisagem de um milhão de hectares de extensão, dominada por azinheiras e sobreiros, os animais vivem em pastagens livres.
O porco alentejano é antigo, mas esteve à beira da extinção nos anos 70 do século passado, sobretudo por causa das modas de consumo e da peste suína. Os incentivos à produção intensiva, no período do pós-guerra, prejudicaram a raça, que não era ideal para este tipo de agricultura. A teimosia dos produtores e das universidades permitiu inverter o declínio. O porco alentejano tem qualidades nutritivas invulgares e foi criada uma indústria muito ligada a Espanha e ao porco ibérico, com selos europeus, nomeadamente DOP e IGP (Denominação de Origem Protegida e Indicação Geográfica Protegida), que representam grande valor económico.
O interesse académico está a intensificar-se, agora com o objectivo de melhorar geneticamente a raça e proteger os consumidores. Investigadores de instituições científicas no Alentejo estudam formas de reforçar a sustentabilidade da produção e de evitar o risco de fraude, por exemplo a venda de carne de qualidade inferior, fazendo-se passar por porco alentejano.
Rui Charneca, professor do Departamento de Zootecnia na Universidade de Évora, coordena um projecto multidisciplinar, “Sustentabilidade do Montado” (Sumo), financiado pelo Programa de Reconstrução e Resiliência (PRR) da União Europeia, que está a estudar todo o contexto do porco alentejano. Refira-se que os académicos não gostam da designação comum “porco preto”, que tem valor comercial e é legal, mas desadequada, pois no mercado “há muitos produtos de porco preto que não são de porco alentejano puro”. Este estudo da raça suína possui quatro componentes: alternativa à castração física dos animais, inseminação artificial mais adequada às condições de campo, melhoramento genético e estudo do ecossistema.
As características deste porco
“Estes animais possuem uma genética diferente dos porcos industriais”, explica Rui Charneca. “As fêmeas têm sete, oito leitões em cada parto. Numa porca em produção intensiva, a média anda à volta dos 14, 15 leitões nascidos vivos por parto. O porco alentejano cresce mais devagar e deposita mais gordura, demora mais tempo a chegar ao peso de abate. Desde as origens da domesticação, a partir do javali mediterrânico, foi sempre criado neste sistema. Não havia fábricas de rações, os animais andavam no campo, adaptados ao clima, a correrem quilómetros à procura de comida, a comerem bolota. Nesta altura da engorda, o porco pode comer dez quilos de bolota por dia.”
O académico da Universidade de Évora explica que os animais fazem parte de uma componente arbórea de produção vegetal e a sua grande vantagem é a carne altamente diferenciada, que permite produtos muito valorizados no mercado.
Uma das componentes do projecto visa criar um protocolo de imunocastração que permita substituir a prática da castração cirúrgica. Quando os animais abatidos estão na puberdade, surgem cheiros e sabores desagradáveis na carne. No porco branco industrial, os animais são abatidos mais cedo do que o porco alentejano, este último com ano e meio, às vezes dois anos. A castração física envolve sofrimento e na Europa muita gente está preocupada com a questão do bem-estar animal.
A castração física “continua a ser legal, mas, com a pressão da opinião pública, pode vir a ser proibida”, diz Rui Charneca. Existe uma metodologia imunológica, os animais criam anticorpos contra uma hormona que desencadeia o processo de reprodução. Os machos não desenvolvem testículos e as fêmeas não desenvolvem os ovários.
“Estudámos dois protocolos de imunocastração exequíveis para o porco alentejano. No final do ano, recebi os resultados dessas substâncias que causam cheiros e sabores, tudo abaixo do limiar de detecção, não havia animais com esses metabolitos. Ainda vamos fazer provas sensoriais, para ter a certeza de que está tudo certo com a carne e com a gordura. Ficámos com um protocolo testado na raça alentejana, que um dia os produtores podem utilizar, quer seja obrigatório ou não.”
O porco alentejano é quase todo vendido para Espanha, 95%, por isso a investigação prossegue, para determinar se há efeitos secundários na qualidade dos produtos. A atitude defensiva da indústria implica a desvalorização das carcaças dos animais submetidos a imunocastração, pelo que a introdução não será imediata. O facto é que os porcos alentejanos não podem ser abatidos mais cedo. O presunto “pata negra”, por exemplo, implica animais de 140 a 150 quilos, mas, por outro lado, as leis europeias podem tornar-se mais restritivas na castração física.
A genética
O estudo do porco alentejano inclui uso de tecnologias que permitem compreender melhor o genoma deste animal. Um dos trabalhos é conduzido pelo Grupo de Genómica Animal e Bioinformática do Centro de Biotecnologia Agrícola e Agro-Alimentar do Alentejo (Cebal), em Beja, no âmbito de um projecto financiado pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Alentejo, em parceria com a Universidade de Évora e as associações do sector. O objectivo é obter informação que permita o melhoramento genético da raça.
Durante dois anos, a equipa agora liderada por Ana Usié Chimenos recolheu amostras que permitiam identificar a carne de animais com denominação de origem protegida (DOP), por exemplo, espessura de gordura, presuntos, cor da carne, entre outros parâmetros de qualidade. Foram também tiradas amostras de ADN.
“Nos programas de melhoramento tradicionais era tudo feito por observação”, explica Ana Usié, dando o exemplo conhecido das vacas leiteiras (a lógica é que uma vaca produtiva terá filhas produtivas). “Essa característica não é só observada, é uma predisposição genética. No nosso caso, ligando a parte genética e os dados fenotípicos, descritivos, tentamos ver se há uma associação estatística.”
Pequenas alterações a que os cientistas chamam “polimorfismos de nucleótidos simples” (SNP, na sigla em inglês) podem estar associadas a características do animal. “Cruzámos os dados genéticos com os descritivos, para detectar algum potencial marcador molecular que nos pudesse ajudar a fazer uma selecção dos animais com características mais interessantes em termos produtivos.”
Há resultados preliminares, mas o trabalho não está concluído. Foi possível sequenciar o genoma completo de 13 animais com qualidade excelente e foram encontradas três ou quatro alterações de genoma que podem estar associadas a uma diferenciação de qualidade de excelência, possíveis futuros marcadores do programa de melhoramento genético. Ana Usié sublinha que os resultados não estão completos e é necessário um processo de validação, com tempo, noutro conjunto de animais, para evitar que haja desvios da amostragem.
Este centro científico em Beja, instituição privada sem fins lucrativos, está também envolvido num projecto que inclui instituições espanholas, visando comparações com cinco raças de porco ibérico e duas portuguesas (estas últimas são o bísaro e o malhado de Alcobaça), procurando encontrar variações genéticas que sejam exclusivas do porco alentejano. Estas variações permitiriam desenvolver marcadores genéticos específicos para a raça, abrindo o caminho a maior segurança alimentar e protecção da fileira económica.
“Se tivermos marcadores únicos da raça, conseguimos verificar se o produto, enchidos, presunto, é originário do porco alentejano e não de um porco cruzado”, explica a cientista. O grupo tem resultados, mas quer alargar a investigação ao porco branco, ao genoma do javali e outras raças europeias, em busca da detecção de mais diferenças únicas do porco alentejano.
A ideia do estudo é entender melhor a origem da raça, explicar os motivos da carne do porco alentejano e do porco ibérico terem tanta qualidade e encontrar marcadores que identifiquem a raça. A cientista considera que é possível um grande avanço no melhoramento, com vantagens para a segurança alimentar, ou seja, será possível saber se o produto no mercado tem mesmo a origem que o vendedor reclama.
O ecossistema
O melhoramento genético será facilitado por técnicas de inseminação artificial e esta é uma das componentes do projecto coordenado por Rui Charneca. A ideia é criar uma metodologia adaptada às condições de campo. Nas explorações intensivas, as fêmeas são inseminadas artificialmente, com doses de sémen compradas a centros que têm machos e produzem essas doses. Isso tem vantagens sanitárias e de progresso genético, pois podem ser escolhidos os melhores animais para a reprodução.
No porco alentejano tudo é diferente, as condições das explorações impedem a inseminação artificial. “Estamos a estudar um método de inseminação única, com menos trabalho, para que os criadores possam aderir. Era importante identificar os melhores machos, que podiam ser pais mais vezes. Assim, podíamos melhorar a raça”, diz Rui Charneca, também investigador do Instituto Mediterrâneo para a Agricultura, Ambiente e Desenvolvimento (MED) da Universidade de Évora. Outra vertente poderá passar pela detecção de marcadores genéticos ligados ao aumento do número de crias.
Todo este complexo trabalho científico multidisciplinar sobre o porco alentejano tem um chapéu, o ecossistema.
“O montado é uma construção humana, uma floresta modelada pelo homem, com árvores, arbustos e ervas, culturas e animais”, explica o académico. “O montado tem permanecido igual há centenas ou milhares de anos. Valoriza a biodiversidade selvagem e plantas que não são de culturas humanas. Este ecossistema é rico, mas há ameaças. Temos tido perda de árvores, quer de sobreiros, quer de azinheiras, superior à taxa de renovação feita de forma espontânea ou pelo homem. Isto é mais grave na azinheira do que no sobreiro, porque esta árvore não tem a valorização da cortiça.”
Embora seja um património com produtos únicos, o montado português tem sido vítima de más práticas de conservação do solo e de abandono, o que provoca desequilíbrios. Outros problemas incluem a pressão turística e as culturas intensivas, mais rentáveis a curto prazo.
“Os projectos de investigação procuram sempre envolver as associações de criadores”, acrescenta o professor da Universidade de Évora. “Será sempre a maneira mais fácil de os agricultores saberem o que está a ser feito. É através das associações, dos técnicos e do que fazemos nas explorações que surge a transmissão prática. Não há nenhuma situação em que tudo seja aproveitado, mas a ideia é que a maior parte das coisas que estamos a estudar tenha aplicação na produção privada”, diz.
“Nos anos 40 ou 50 do século passado, cerca de metade dos porcos que se consumiam em Portugal era de raça alentejana”, conclui Rui Charneca. “Hoje, são uma gota de água. A maior parte da carne que comemos é de produção intensiva.” A raça esteve quase extinta nos anos 80, mas houve nessa altura uma mudança na política agrícola comum europeia que favoreceu a biodiversidade e o património cultural. A universidade começou a estudar o porco alentejano, foram criadas associações e os produtos foram protegidos.
Hoje, a produção está organizada, a raça recuperou, mas a situação mais favorável não significa que tenham desaparecido os riscos para este património nacional.