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Alergia mata, e muitas pessoas no Brasil e em Portugal não têm acesso a especialistas
Novo presidente da Organização Mundial de Alergia, o português Mário Morais de Almeida diz que é preciso conscientizar autoridades e população para que todos tenham acesso a tratamentos adequados.
Os artigos da equipa do PÚBLICO Brasil são escritos na variante da língua portuguesa usada no Brasil.
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Pelo menos um terço da população mundial sofre de alergias, sendo que boa parte não tem acesso a especialistas para tratamentos adequados. Essa é a realidade no Brasil e em Portugal, diz Mário Morais de Almeida, 62 anos, o primeiro português a presidir a Organização Mundial de Alergia (WAO, World Allergy Organization), com sede nos Estados Unidos.
Diante desse quadro, ele afirma que a principal meta de seu mandato de dois anos é “educar e conscientizar as autoridades e a população” para o problema, sempre visando soluções que possam ser colocadas em práticas por países com maior ou menor taxa de pessoas alérgicas.
O médico também ressalta a importância do acesso à saúde pelos imigrantes que vivem em Portugal e chama a atenção para um inimigo bastante conhecido de quem tem alergia: o pólen, que vem se tornando cada vez mais presente por conta das mudanças climáticas. A seguir, os principais trechos da entrevista que Almeida concedeu ao PÚBLICO Brasil.
Um terço da população do mundo é alérgica. Quais são os tipos que mais afetam o ser humano?
Essas doenças também são conhecidas como rinite alérgica, asma, conjuntivite, alergia alimentar, alergia a medicamentos, entre outras. A mais grave é a anafilaxia, o choque anafilático, que pode pôr a vida em risco. Curiosamente, os dados que temos do Brasil mostram que, nesse aspecto, não somos apenas países-irmãos, mas que a tendência é a mesma, cerca de 30% de brasileiros sofrem de doença alérgica.
Qualquer pessoa pode ser alérgica?
São doenças muito frequentes em todos os grupos etários, começando pelas crianças em idade pré-escolar e escolar, adolescentes, adultos e idosos. E, aqui, há uma característica que é única, porque, entre as doenças crônicas, sabemos que algumas estão relacionadas com hábitos. Por exemplo, quem fumou e desenvolveu bronquite ou quem tem problemas metabólicos e desenvolveu diabetes, hipertensão ao longo da vida. Essas (alergias) começam cedo e mantêm-se em várias fases da vida. Pode atingir desde uma criança com meses de vida, porque tem problemas alimentares, até o seu bisavô, com quem as pessoas estão mais preocupadas, e muito bem, com o controle de pressão arterial, mas esquecem que o idoso não consegue respirar pelo nariz, que tem uma bronquite que não sai daquele peito, e são situações que depois de diagnosticadas são de controle fácil, a um custo sustentável.
As pessoas confundem, por exemplo, alergia com resfriado?
A doença mais frequente é a rinite alérgica, mas, mesmo no meu país, no seu país, em todo lado, muita gente com rinite acha que está sempre constipada (resfriada), como se fosse uma infecção crônica, mas é uma rinite alérgica. Há pessoas que estão com tosse, com gatinhos (ruídos) no peito. Isso é uma infecção, uma bronquite? Não, é asma. Outras com problemas na pele, como coceiras, pele seca, que é uma dermatite atópica. Ou há aquelas que sabem que não podem comer um alimento, mas acham que é só uma intolerância, mas é uma alergia, como ao leite, que numa criança é mais frequente, ou aos mariscos, no caso de um adulto.
Como esse diagnóstico pode se tornar mais amplo?
Antes de mais nada com educação, ensino, passar informação, capacitar por um lado a população, que, nesse aspecto, qualquer colaboração que se faz com um órgão de comunicação social é muito importante, porque há pessoas que vão ler e pensar: ‘pois de fato, não faz sentido, todos anos, em determinados meses, isso se repete, é sempre igual, eu de fato tenho de procurar ajuda’. Ao mesmo tempo, treinar profissionais de saúde em geral. É claro que, em alguns países, como Portugal e Brasil, nós temos acesso a especialistas, mas, se pensar no Brasil, a Sociedade Brasileira de Alergia e Imunologia (ASBAI) mostra que a distribuição de especialistas está muito concentrada no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Em outras áreas, com grande densidade populacional, temos poucos especialistas. Então, temos que fazer programas de educação para todos os profissionais de saúde: médicos, enfermeiros, farmacêuticos, todos que podem colaborar no controle dessa doença. E temos que aumentar o diagnóstico, capacitando mais os doentes a procurarem ajuda e a entender que suas queixas têm que ter uma explicação que não seja só o acaso ou uma constipação que não passa. Ou um problema na pele que nunca mais se resolve. Porque nós não conseguimos de fato, hoje em dia, ter uma excelente cobertura de especialistas. Aliás, em alguns países, nem temos especialistas, estamos a fazer isso no caso da África, em algumas zonas da América Latina, dar formação aos nossos colegas para que consigam ao mesmo tempo influenciar as autoridades para que promovam a criação de mais especialistas.
Qual é a situação em Portugal?
Somos um país pequeno, mas, na zona litoral, temos muito mais especialistas do que no interior. Temos umas das melhores coberturas em especialistas, mas há pessoas que, diariamente, têm de se deslocar a grandes centros para obter resposta, porque a nível local, no interior, na zona mais rural, ainda não têm acesso a esses cuidados, porque não existe essa rede montada. E isso é verdade no Brasil, nos Estados Unidos, no Reino Unido, em todo o mundo.
Como alguém distingue uma gripe de uma alergia?
A questão de uma gripe é que, habitualmente, sentimos queixas nasais, temos dor de cabeça, podemos ter um pouco de febre, mas tudo isso vai desaparecer em três, quatro, cinco dias. Vamos usar paracetamol para baixar a temperatura, um anti-inflamatório se o corpo doer, mas, se as queixas persistem, estamos sempre com o nariz entupido, com dores de cabeça, a espirrar. Depois, começamos com comichão nos olhos, andamos sempre com peso no peito, tosse, e isso dura semanas e, em alguns casos, meses. Porque, em alguns casos, somos alérgicos à poeira, e sempre que estamos a fazer uma limpeza em casa ou vestir uma roupa que estava guardada há muito tempo, ficamos outra vez com sintomas. Então, temos que começar a perceber que há um problema crônico, que não é uma infecção respiratória aguda, nem um resfriado.
É preciso conversar com o profissional de saúde e procurar ajuda. É não é necessário que todos que têm esses sintomas procurem um especialista. Temos cuidados primários, médicos que vão reconhecer logo o diagnóstico clínico e iniciar uma medicação, um tratamento para que a pessoa tenha qualidade de vida. Porque, se não consegue dormir ou não consegue fazer um esforço mínimo, que fica logo com tosse e com falta de ar, isso começa a dificultar muito a vida. Quando não se dorme bem, não se acorda bem. Se a criança passa a noite a tossir, os pais não descansam, não são produtivos. As crianças na escola começam a ter maus resultados. Nós temos que colaborar para aumentar essa notoriedade e permitir um maior acesso aos cuidados diferenciados mas que começam a ser feitos por médicos não especialistas.
Quais os casos em que se deve procurar um especialista?
A maior parte das pessoas tem situações ligeiras, moderadas e, depois, uma porcentagem inferior tem particularidades muito graves, que precisam de uma abordagem mais especializada. Há casos pela sua gravidade ou pela sua dificuldade de ficarem controlados como uma asma grave, por exemplo. Todos os dias, a pessoa tem falta de ar, não consegue dormir, trabalhar, isso é uma indicação absoluta de que a qualidade de vida fica muito perturbada, passa a vida nas urgências (emergências), a tomar muita cortisona oral. Quem tem dermatite atópica grave também está sempre com comichão, com feridas na pele, o contato social torna-se muito difícil, porque as pessoas erroneamente pensam que é uma doença contagiosa.
Há também um problema de a pessoa ingerir um determinado medicamento ou alimento, então, tem que saber quais são as alternativas, tem que ter um bom diagnóstico e tanto quanto possível ter acesso ao kit de auto-administração de adrenalina, que são “canetas de adrenalina”. É um trabalho que temos feito com muita profundidade em Portugal. Esse acesso existe, as pessoas que precisam dessas canetas (auto-injetoras) não pagam nada, é o SNS (Sistema Nacional de Saúde) que co-participa o valor.
Esse tratamento existe no Brasil?
No Brasil, não existe no mercado ainda, e aqui estamos fazendo o maior esforço para que haja maior acesso a todos e ajuda na compra desses kits. Felizmente nossos colegas no Brasil, e em outros países, conseguem arrumar umas seringas com adrenalina. Mas temos que tentar fazer com que a população a nível global possa estar protegida.
A alergia pode matar?
Pode. Os dados do Brasil são muito curiosos. Ainda existe bastante mortalidade por asma no Brasil. Duas a três mil pessoas morrem por ano. Felizmente, a internação vem a diminuir. E é natural quando a taxa de internação vai diminuindo, a mortalidade diminui também, o que é bom sinal. Em Portugal, a mortalidade por asma já é muito baixa, mas a taxa de internamento é elevada. Agora por anafilaxia, felizmente cada vez se fala mais nisso, mas ainda pode ocorrer. Nas unidades de saúde, relaciona-se muito a uso de medicamentos, é o tal choque anafilático, e, na comunidade, o mais importante, além dos medicamentos, são os alimentos e as picadas de insetos. Fala-se bastante na abelha, na vespa, que, infelizmente, são pessoas que não estão adequadamente diagnosticadas, que não fizeram tratamentos e que não têm o kit adrenalina, não tem acesso ao mesmo, mas deveriam ter.
No ano passado, em Portugal, aconteceram mais alguns casos fatais. E esse kit pode salvar a vida de quem foi picado. Mas tem que ir ao médico depois. E temos a vacina anti-alérgica, que protege mais de 90% da ocorrência de episódios fatais. Aqui, essa vacina salva vidas. Não é questão de ficar com a mão e a boca um pouco inchadas após ser picado, é ficar com falta de ar, com sensação de desmaio, vômito, diarreia. É uma reação anafilática muito grave.
Essa vacina também está disponível no SNS?
Essa vacina é injetável e disponível em Portugal, mas não há co-participação pelo SNS. E custa de 300 a 400 euros por ano. Temos feito esforços para isso ser revertido. Uma sociedade que tem de ser solidária e apoiar as pessoas mais fragilizadas, não faz sentido ser assim. Essa vacina deve ser aplicada todos os meses. E não é só o custo da vacina, é o custo do deslocamento, às vezes, a pessoa mora a duas horas de um hospital, de um posto de saúde. Em Portugal, as pessoas acabam por se resignar.
Esse kit vai chegar ao Brasil?
Tem havido muito esforço mas, de fato, ainda não aconteceu. Mas isso é verdade no Brasil, no México, em muitos países. Agora foram autorizadas pelas autoridades americanas e europeias a introdução de um kit de aplicação internasal. Ou seja, deixa de ser uma injeção e passa a ser um spray que se põe no nariz com adrenalina. Nós aqui temos a esperança de que isso possa permitir o acesso maior e mais facilitado da população que precisa, e a países como o Brasil, entre outros. A Agência Europeia de Medicamento (EMA) já aprovou esse kit, Agora, é chegar a um preço, mas é um processo recente, de cerca de seis meses. Esperamos que, em breve, tenha na Europa e nos Estados Unidos. Mas o nosso interesse é que esses kits estejam disponíveis a todos os países.
Quais são os países com menor taxa de alérgicos?
Sabemos que alguns países, teoricamente menos desenvolvidos, com exemplos na África, nos países asiáticos e nos latino-americanos, a frequência é considerada mais baixa. Pelo próprio estilo de vida, pelas características ambientais, maneira como se alimentam. Por outro lado, não são investigadas pela falta de recursos, de acesso ao diagnóstico e de pessoas com alguma capacidade ou algum treino em doenças alérgicas. Efetivamente, países menos desenvolvidos têm menor frequência, mas isso está a mudar, a aumentar.
As mudanças climáticas estão piorando quem sofre de alergia?
Claro. As alterações do clima têm tido muita influência e nós podemos pegar só um capítulo para se ter uma ideia: o pólen. O que tem acontecido é que a capacidade de produção de pólen tem aumentado muito. Quando se juntam à poluição da atmosfera, esse pólen modifica-se e torna-se ainda mais agressivo, o que justifica que a alergia ao pólen seja mais grave no meio urbano do que no meio rural. Por outro lado, a seca a nível quase global vai fazendo com que fiquemos expostos mais tempo durante o ano ao pólen. As épocas clínicas começam mais cedo, acabam mais tarde e surgem em épocas inesperadas. Este ano, em Portugal, tivemos um nível de pólen do qual não tínhamos registro, e por muito tempo.
Há também o efeito das poeiras que vêm da África. Nós respiramos essas poeiras, que chegam aos nossos pulmões. Tudo isso são consequências do impacto da crise climática. E as pessoas ainda falam: ‘ai, sujou o meu carro’. Esquece o carro. Você está ficando completamente intoxicado e vai se preocupar com o seu carro? Nessa altura, é quase patético ver as pessoas na rua a correr, com concentrações de poeira altíssimas. Vai fazer pior do que qualquer benefício que possa trazer o exercício físico. Por isso, os avisos que se fazem nessa época de evitar de estar na rua e para se usar máscara são muito importantes. Infelizmente, nem sempre são seguidos pela população. Temos que encarar isso com muita seriedade.