Discussão sobre o aborto: o que dizem os projectos de lei e as associações
Parlamento debate esta sexta-feira alterações na lei do aborto, nomeadamente o alargamento do prazo para as 12 semanas. Associações concordam com a generalidade das alterações propostas.
O Parlamento vai discutir esta sexta-feira algumas alterações na lei do aborto, entre as quais o alargamento do prazo de acesso, que actualmente se fixa nas dez semanas.
O debate foi agendado pelo PS, que apresentou um projecto de lei para passar de dez para 12 semanas o prazo permitido para o aborto a pedido da mulher, e de 12 para 14 semanas caso seja necessário para “evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física e psíquica” da grávida.
Mais ainda, os socialistas pretendem que acabe o período de três dias de reflexão entre a consulta e a intervenção, e que passe a estar apenas um médico envolvido no processo – acabando com a necessidade de o atestado que comprova que a gravidez não excede as 12 semanas ser assinado por um médico diferente do que faz a interrupção da gravidez. Os outros partidos de esquerda também apresentaram propostas, com alguns pontos a convergirem. A direita não deverá acompanhar mexidas na lei.
Catarina Ramalho, d’A Coletiva, aponta que alguns dos tópicos da proposta dos socialistas estão em linha com as reivindicações do colectivo feminista. Fica, contudo, aquém no prazo – neste ponto, A Coletiva alinha-se com o projecto do Livre e do Bloco de Esquerda, que defende o alargamento para as 14 semanas. O PCP defende as 12 semanas, e entregou também projecto de lei nesse sentido.
O Livre, à semelhança do PS e do BE, defende o fim do período de reflexão obrigatório. Quer ainda garantir que é possível realizar um aborto em qualquer hospital do país – neste sentido, entregou um projecto de resolução (sem força de lei) em que recomenda a contratação de médicos não objectores. O Bloco de Esquerda, à semelhança do PCP, quer que os médicos comuniquem se são objectores de consciência aos serviços do SNS. Defende também o fim do período de reflexão.
Já o PAN quer também um registo actualizado dos profissionais de saúde objectores de consciência e que seja criado um circuito de referenciação e encaminhamento da mulher que solicite uma IVG no SNS, independentemente do primeiro local a que se dirija. Quer que o apoio psicológico e social disponibilizado às mulheres, independentemente de realizarem ou não o aborto, seja prolongado, removendo a actual limitação ao período de reflexão.
Para a Associação para o Planeamento da Família, “tudo o que seja a favor de melhorar o acesso das mulheres à IVG é favorável”. Por isso, em traços gerais, a associação posiciona-se a favor dos projectos de lei entregues. “Já desde a altura do referendo, estes são pontos que a APF tem vindo a discutir internamente, porque a própria Organização Mundial da Saúde identifica estes elementos, entre outros, como barreiras de acesso à interrupção”, aponta Mara Carvalho, médica de família e membro da direcção da APF.
“Quer às 12, quer às 14 semanas, somos favoráveis. É importante perguntar o porquê das dez semanas e relembrar que esta opção foi puramente política. Não foi por qualquer fundamento científico”, defende Mara Carvalho.
E continua: “Os três dias de reflexão também sempre nos pareceram excessivos, porque entendemos que uma mulher, perante uma gravidez não desejada, não vai reflectir porque o médico ou a lei dizem; vai reflectir porque está numa situação em que precisa de uma resolução, e isto é independente de estar plasmado na lei. Quem lida com estas situações tem a percepção de que, na grande maioria, quando procuram os cuidados de saúde é porque a decisão já foi tomada.”
A APF entende ainda que “não há mais nenhum procedimento médico que exija dois médicos” e, portanto, que o fim desta exigência seria benéfico.
Para A Coletiva, há, contudo, uma “medida fundamental” que está de fora do debate: a possibilidade de a IVG ser “alargada às unidades de saúde familiares, olhando para aquilo que é a actual crise do SNS e dos contextos hospitalares e também para o que os números dizem, que a maioria das IVG são medicamentosas”.
Por isso mesmo, também a APF concorda com esta mudança: “É um método que pode ser feito sem ser em meio hospitalar, desde que se montem os circuitos. Isso permitiria também alargar o número de profissionais habilitados para realizar as interrupções, podendo ser feitos pelos médicos de família. Para além da mais-valia de terem serviços de proximidade com os utentes.”
"Não nos podemos abster de fazer estas lutas"
O secretário-geral do PCP, Paulo Raimundo, salvaguardou, esta terça-feira, que não seria por iniciativa dos comunistas que o debate se reabriria agora. “Quero dizer, com toda a franqueza, que por nossa iniciativa não voltaríamos a esta questão agora, neste momento, até porque consideramos que o quadro da maioria parlamentar não é propriamente favorável a avanços, é até mais susceptível a recuos”, disse aos jornalistas à porta da empresa Bimbo, em Mem-Martins, onde esteve a recolher assinaturas para um abaixo-assinado que pede o aumento dos salários.
Para A Coletiva e para a APF, este é, no entanto, um momento tão bom como outro qualquer: “A questão do aborto é uma questão de saúde pública, é uma questão de direitos e não nos podemos abster de fazer estas lutas, em particular porque ela faz parte da salvaguarda da nossa democracia”, defende Catarina Ramalho.
Mara Carvalho acredita que, “se este é um assunto considerado fracturante e ainda há discussão a fazer”, então “todos os dias são bons para discutir coisas tão importantes como os direitos das mulheres”.
O aborto em Portugal
Uma investigação levada a cabo em 2022 pela LLYC, empresa de marketing que mediu a polarização online deste tema, concluiu que, em Portugal, o aborto é o tema que mais divide, com as pessoas mais indisponíveis para ouvir ideias diferentes das que têm.
A interrupção voluntária da gravidez foi despenalizada em 2007, e, desde então, o aborto é permitido até à 10.ª semana de gestação – um prazo que é “o mais restritivo de toda a Europa, o que desconsidera as recomendações da Organização Mundial da Saúde”, realçaram os deputados socialistas no projecto de lei.
O prazo leva muitas mulheres a irem abortar a Espanha depois de completadas as dez semanas, já que a lei espanhola permite que o aborto seja feito até às 14 semanas. Segundo o Expresso, 530 mulheres portuguesas foram ao país vizinho interromper a gravidez em 2023.
A par do agendamento da discussão, há uma carta aberta subscrita por quase 200 pessoas de diferentes áreas que pede à Assembleia da República o reforço do "acesso efectivo" à IVG, nomeadamente através do alargamento do prazo.
A carta é promovida por Inês Melo Sampaio, jurista na Comissão Europeia, e Teresa Violante, investigadora universitária e advogada, e é subscrita pela eurodeputada e ex-líder do BE Catarina Martins, a apresentadora televisiva e activista Catarina Furtado, as antigas vice-presidentes do PSD Paula Teixeira da Cruz e Teresa Leal Coelho, a antiga eurodeputada e diplomata Ana Gomes, os eurodeputados do PS André Rodrigues e Carla Tavares, o músico Carlão, a antiga ministra da Justiça Francisca Van Dunem, e actuais deputados do PS e BE.
Os subscritores alertam "para a necessidade de adopção de medidas legislativas no sentido do reforço do direito à IVG e da remoção dos obstáculos ao seu exercício, nomeadamente em matéria de alargamento do prazo e de regulamentação do exercício do direito à objecção de consciência por profissionais de saúde", e que "nada impede, política ou juridicamente, a AR de rever a lei que, em 2007, abriu de par em par esta janela de dignidade em Portugal", devendo "acompanhar a evolução da ciência e as recomendações das organizações internacionais nesta matéria, exercendo a sua competência legislativa nos termos constitucionais ordinários".
Pedem ainda que sejam recolhidos contributos de "todas as associações representativas dos direitos das mulheres, bem como de médicos e demais profissionais de saúde", para que eventuais alterações sejam "bem alicerçadas na ciência e na evidência científica".