Cá vamos nós outra vez. A percepção pública dos médicos em Portugal é uma montanha russa que oscila entre o Olimpo do Bestial e a Cova da Besta. Esta semana calhou-nos a segunda, particularizada naqueles que se têm vindo a recusar a fazer mais horas extraordinárias. Uma espécie de "antigamente é que era bom", dirigido aos jovens médicos, que seriam um downgrade dos deuses, seus antecessores.
Comecemos, pois, pelos deuses. Nenhum médico o é. Não estamos na fronteira entre a vida e a morte, porque não há uma fronteira, é um contínuo. Ser médico é muito parecido com jogar ao "macaquinho do chinês" com os doentes. Podemos apanhar cada passo mais ou menos adiantado e até conseguir detê-lo antes que progrida muito mas no momento em que voltamos costas todos avançam (quando não o fazem nas nossas barbas), rumo à negra parede que hão-de chegar a tocar, com ou sem a nossa ajuda. O trabalho consiste precisamente em fazer com que cheguem lá tarde e que o caminho tenha sido feito nas melhores condições possíveis.
O endeusamento dos médicos à custa da responsabilidade que assumimos despoja-nos da nossa condição humana, tão imperfeita quanto a do doente, sempre insuficiente face à nossa missão. Também nós chegamos à maldita parede e precisamos de descansar para poder fazer um bom trabalho, por mais sagrado que ele seja.
Esta recusa não é uma questão laboral, embora pudesse ser. Se alguém se lembrasse de tentar legislar, para uma outra profissão, mais 3,75 semanas de 40h por ano, que muitas vezes se acumulam em bolsas não usufruídas ou pagas, teríamos a urgência entupida de dirigentes sindicais com enfartes. Mas se analisarmos a questão do ponto de vista estrito da segurança do utente, chegamos à conclusão evidente. Outras profissões de cujo exercício possam depender outras vidas — camionistas, pilotos de avião — são sujeitas a regras que garantem o descanso necessário a uma actividade segura com um rigor que não se verifica nos cuidados de saúde.
Não gostava de ser operada por um colega a trabalhar há 20 horas, como acontece por todo o país, todas as noites. E sei que, se esse colega cometer um erro é acrescida e não atenuada a sua culpabilidade. O seguro de acidentes de trabalho pode recusar-se a assumir as despesas relacionadas com qualquer infelicidade que lhe aconteça, fora das 12h contínuas previstas na lei, com custos bem mais altos do que o salário auferido por turno.
Os médicos internos em funções em 2025, nascidos sensivelmente entre 1994 e 2000, ganham valores brutos entre os 10,11 e os 13,55 euros por hora. Quando comecei, rondava os 9,00 euros. É inegável, a nossa responsabilidade é imensa. Mas a do carpinteiro que tive de contratar nesse ano era certamente maior porque o valor dele (idêntico entre os vários orçamentos que pedi), era 17,00 euros. Mais IVA.
E voltamos aos deuses. Aos que exerceram quando a pirâmide demográfica assentava na juventude e não numa população envelhecida com necessidades absolutamente incomparáveis. Aos que agora regressam da reforma por amor à causa pública. A Ordem dos Médicos criou um Fundo de Solidariedade que tem procurado dinamizar como forma de responder à precariedade que alguns colegas enfrentam. Eu também regressaria ao trabalho antes de admitir recorrer a ele.
Os médicos da GenZ — como nos chamaram — são um terço da força de trabalho do SNS. Os mais velhos de nós, ainda Millennials, acabávamos de chegar à profissão quando constituímos a primeira linha de soldados a ser enviados para as salas de respiratórios de todo o país para preservarmos quem já tinha a experiência necessária para coordenar a campanha e tomar as decisões difíceis.
Ao longo de vários ciclos governativos, o SNS ou os seus dirigentes têm-se mostrado incapazes de se adaptar às exigências trazidas pelas transformações demográfica, tecnológica e científica. As classes profissionais são o bode expiatório mais fácil. Certamente, também o mais injusto.
(Des)conflito de interesses: a autora deste texto nasceu em 1995, meio millenial e meio GenZ. Exerce desde 2020. Nunca fez greve. Acumula anualmente cerca de 200 horas em bolsa. Continua convencida de que ser médica é ter a melhor profissão do mundo.